Os patinadores do frio

O boom económico e as baixíssimas temperaturas contribuíram para a popularidade desta atividade.

A ’patinagem’ no gelo poderá ter surgido na Finlândia no segundo milénio a.C., como meio de economizar a energia do corpo durante a locomoção. Como ‘patins’, os nossos antepassados usaram ossos, sobretudo metatarsos de cavalo. A verdadeira patinagem teve início no século XIII ou XIV, possivelmente nos Países Baixos, ao serem aplicadas lâminas de aço em superfícies de madeira que se amarravam aos pés com correias. Foi este o início do patim moderno, que, em vez de deslizar sobre o gelo, o corta. O calor da fricção entre o patim e o gelo produz uma fina camada de água que facilita o movimento do patinador.

Não terá tardado para que esta forma de deslocação se tornasse uma atividade recreativa, como bem ilustraram os artistas da Flandres e dos Países Baixos. Não só é possível encontrar representações de patinadores no gelo nos livros de horas do século XV, como também os célebres trípticos O Jardim das Delícias Terrenas e As Tentações de Santo Antão de Hieronymus Bosch exibem humanos e criaturas bizarras em patins. Dos séculos XVI e XVII, as pinturas e gravuras de paisagens invernais, em particular as de Pieter Bruegel, o Velho (imagem) e Hendrick Avercamp – por vezes com notas humorísticas – são testemunhos exemplares da patinagem sobre rios, lagos e canais congelados. Até nos azulejos de Delft surgem patinadores. O boom económico da época – a era do Mercantilismo –, que permitia mais lazer a todas as classes sociais, e as baixíssimas temperaturas dos invernos – estava-se em plena Pequena Idade do Gelo –, contribuíram para a popularidade desta atividade. O primeiro clube de patinagem do mundo terá sido fundado tão cedo quanto 1642, embora na Escócia, em Edimburgo.

A Pequena Idade do Gelo foi o período de grande arrefecimento por que a Terra passou, principalmente na Europa e na América do Norte, desde o início do século XIV até ao final do século XIX – delimitações estas que não são, porém, consensuais. Houve três fases particularmente frias, a primeira começando por volta de 1650, a segunda sensivelmente em 1770 e a terceira em 1850. Existem dados de observação de manchas solares na superfície do Sol entre 1645 e 1715 que indicam uma significativa redução da atividade solar durante este período, designado por ‘Mínimo de Maunder’. As manchas solares, visíveis a olho nu (com filtros), são áreas na superfície do Sol onde a atividade magnética é particularmente intensa, causando uma redução na convecção do plasma solar e fazendo com que essas regiões arrefeçam e se apresentem mais escuras. Embora na antiga China, ainda antes do século IX a.C., já tivessem sido notadas, a sua primeira observação telescópica foi feita em 1610 pelo astrónomo inglês Thomas Harriot. Galileo Galilei também as começou a observar nessa altura, mas só as registou a partir de 1612.

Se o frio extremo da Pequena Idade do Gelo promoveu a patinagem, o mesmo não se pode dizer da agricultura e da caça: as falhas nas colheitas e a escassez de presas resultaram numa crise alimentar com proporções dramáticas nas regiões mais a norte. Nos Países Baixos, a severidade das condições climáticas e as consequentes adversidades foram frequentemente atribuídas à prática de bruxaria, o que comummente culminava em acusações contra mulheres. A própria obra de Bruegel inclui diversas representações de cenas de bruxaria.

Na atualidade, o congelamento dos canais dos Países Baixos é cada vez mais raro, e, consequentemente, patinar sobre eles também. Em 2018 e 2021, anos em que tal aconteceu, milhares de pessoas arriscaram as suas vidas ao patinarem sobre camadas de gelo perigosamente finas. Além disso, tudo indica que uma parte da Holanda ficará submersa dentro de poucas décadas devido à subida do nível do mar. Assim, no atual contexto de aquecimento global, podemos olhar para as paisagens geladas dos velhos mestres de forma dual: por um lado, como registos das alterações climáticas do passado, por outro, como testemunhos da resposta humana a essas mesmas alterações. Ao longo da História, a humanidade tem enfrentado inúmeros desafios e tem sabido superá-los ou adaptar-se a eles. Não só os povos do hemisfério Norte durante a Pequena Idade do Gelo foram exemplos disso, como também a instalação do primeiro ringue artificial para patinagem no gelo em Londres, em 1876, coincidiu com o fim desse período. Também nós, num futuro muito breve, teremos de nos adaptar às alterações climáticas, caso não as consigamos parar ou reverter. l

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