O dia nasceu bonito, de céu azul e cheio de sol sobre Alcácer, mas não me serviu de nada. De repente a notícia cai na caixa de mensagens do telemóvel, vinda do Francisco Paraíso: «Morreu o Florêncio!». E eu que nada mais sei fazer se não escrever e não tenho jeito para as palavras faladas, senti que precisava de escrever sobre o Florêncio, talvez o último dos Bons Malandros, com licença do Mário Zambujal, que teve em comum com ele terem sido figuras de A_Bola, as Cinco Letras Mágicas como lhe chamava o chefe Vítor Santos, agora já tão moribunda que até saiu do Bairro Alto e fechou aquelas portas inimitáveis do n.º 23 da Travessa da Queimada. O Flores, como a gente o alcunhou, foi autenticamente aquilo que na gíria lisboeta se chama de manguelas. Tudo nele era gozo e malícia. Parece que o Destino me pregou a partida de escrever nestas páginas o óbito de tantos dos meus amigos, e eles têm vindo a morrer de forma quase diria industrial. Por inteiro homem da cidade, tinha um prazer especial em assumir-se: «Sou da noite!». E foi. E era. Com ele em Lisboa, depois de se ter instalado na Holanda com a mulher Sybelle, da qual teve dois filhos, a Nicole e o_Rui (que ainda nomeei correspondente de A Bola na Holanda), ninguém podia ir para casa cedo. Gostava dos lugares antigos, ele que cantou no Maxime quando era um rapaz fura-vidas a esgravatar o dia a dia no Parque Mayer, e nós íamos a um Maxime degradado e displicente com uma ‘stripteaser’ chinesa cinquentona agarrada a umas fitas com bolinhas como as que os taxistas usavam para poupar as costas, ou ao Nina onde um porteiro vestido como um gato-pingado esfregava as mãos uma na outra à nossa chegada, com os mindinhos esticados, e dizia obsequioso: «Entrem, entrem, a sopinhas é grátes», assim mesmo com E. Valia tudo por um prego e por uma cerveja depois do fecho do jornal, madrugada dentro.
O António começou a sua vida de jornais numa fase em que decidiu experimentar trabalhar nas Baleares e conheceu a Sybelle que, não por acaso, era muito amiga da mulher de Johan Cruyff. Ligou para A Bola, ofereceu-se para fazer uma entrevista com o Fininho, na altura no auge da carreira, e ficou. Não era o correspondente de A_Bola na Holanda porque, nesse tempo, a Holanda tinha um correspondente excecional (que tivemos a felicidade de ter como colaborador neste jornal), Pereira Ramos, que mais tarde se transferiria para Madrid. Mas começou a perceber a cada vez maior importância da política futebolística e o valor dos contactos que foi arranjando dentro da UEFA e da FIFA. Recebeu, em troca, fontes de informação e uma abertura total que o fazia, bem à Moscambilhas (outra das alcunhas que lhe pusemos) ir a todas as grandes competições, se não acreditado por A_Bola, convidado pelas respetivas organizações. Talvez nenhum outro jornalista como ele (ou como o nosso amigo comum, o catalão Paco Aguilar) tenha tido tamanha capacidade de se envolver com as gentes do poder do futebol, de tal forma que a sua influência na vinda do Euro-2024 para Portugal não deve ser jamais esquecida.
Pelo mundo; pela vida
Não saberia contabilizar a quantidade de reportagens que fiz lado a lado com o António Florêncio ao longo da minha vida, e não sei ao certo como explicar a forma como a nossa intimidade se estreitou ao ponto de sermos, por vezes, capazes de suportarmos o mau feitio de um e de outro. Agora, que ele se foi, e já tão pouco conversava com ele, bate aquela saudade que, à Tom Jobim, não sai de mim, não sai de mim não sai. Queria poder escrever uma página que não fosse triste porque o Flores era tudo menos triste. Fazia-nos rir até à morte, como ia acontecendo uma vez na viagem entre Saint-Maur e Paris que, por via de anedotas grotescas, obrigou o Bruno Santos, que ia a guiar, a fazer ziguezagues na autoestrada de tanto rir até, finalmente, atirar com o carro para a berma para alívio meu e do José Vidal que íamos atrás. Com o Florêncio vinham as expressões bairristas soltadas a propósito a qualquer momento – se algum redator mais jovem metia bedelho na conversa que os mais batidos estavam a ter, corria-o com um seco: «Ei, juniores é de manhã!». Se alguém vinha com uma conversa chata, que não estava para aturar, dava um toque de Mário Henrique Leiria: «Vou da peida! Sou do Belém!». Velho António, por que buraco da vida te escapaste agora?
Fez de tudo: foi assessor de imprensa da Federação Portuguesa de Futebol; foi diretor de comunicação do Benfica; foi responsável pelo gabinete de imprensa do_Euro-2004; foi braço-direito do Artur Jorge quando este saiu do FC_Porto para assinar contrato com o Matra Racing; foi presidente do Clube Nacional da Imprensa Desportiva (CNID); fez parte do gabinete de comunicação da primeira campanha de Manuel Alegre à presidência da república; foi sobretudo um camarada diferente de todos os outros porque a sua personalidade era única e inconfundível. Mas era camarada! _Tão camarada que, quando o Joaquim Rita (e eu com ele) decidiu abandonar A_Bola, que nos tratava abaixo de cão, para assumirmos uma curta e infeliz experiência n’O Jogo, não hesitou em seguir à nossa beira.
A qualquer momento, desgoelava-se: isto é, abria a garganta e soltava o início de uma canção, fosse ela tanto um tango (Mi Buenos Aires Querido!) ou um fado (Eu Sou um Homem da Cidade…), ou uma tirada à Francis Albert Sinatra, para ele o Francisco Alberto (These little town blues…), para nos recordar do tempo em que era, orgulhosamente, um rapaz desenrascado que fazia o que podia para ir ganhando a vida. Conhecia toda a gente e, se não conhecia, agia como se conhecesse. Era desarmante na sua maneira de se dirigir às pessoas, exibindo uma familiaridade que muitas vezes não existia. Tinha um faro especial para sacar notícias, não tinha horas para fazer ‘dinglindar’ o telefone na casa de qualquer um de nós que trabalhasse mais de perto com ele, adorava o Ajax como adorava o Belenenses, tornou-se por vontade e esforço próprios um homem do mundo, sem deixar de ser, sempre, um homem da cidade, da sua cidade de Lisboa. Nos últimos anos, desde que deixou de ser presidente do CNID, ficou distante. Lá, em Alphen aan den Rijn, nos arredores de Amesterdão, guardou-se na placidez do lugar depois de ter vivido uns anos em Cascais. Como não conduzia, tudo para ele era perto: sabia convencer sempre alguém a levá-lo a casa. Depois, sorridente, dava uma palmada na carroçaria do veículo e soltava uma daquelas suas típicas expressões: «Ah! O nosso burro!». Moscambilhas, não conseguiste dizer à morte: «Vou da peida!»? Deixa estar. Digo por ti. Eu e os que continuamos a recordar-te por tudo o que nos deste. E foi muito.