1. Só há democracia se houver democratas. Só há democracia em ato, no momento em que verdadeiros democratas a pratiquem. Se não, o que se evoca é apenas hipocrisia beata, instrumento de chantagem para calar os insubmissos. Puro situacionismo, portanto.
É esse o problema do país, que tanto preocupava Mário Soares, o democrata fundador maior a quem o país tanto ficou a dever. Como garantir e. assegurar o funcionamento de uma democracia em que os democratas rareiam.
2. Quando André Ventura, hábil e certeiro, surgiu no pântano político, tentei explicar num artigo no Nascer do SOL o que o trouxera e por que tão rapidamente se afirmaria. Quando ficaram claros o cariz nada democrático e a tática errada e mesmo estúpida, adotados combinadamente pelos partidos e a comunicação social da situação, para o vencer – em vez de enfrentarem as questões e os factos bem concretos que ele colocava, percebeu-se logo que o Chega não pararia de crescer e vertiginosamente. André Ventura é a má consciência, recalcado remorso da gente que tomou conta do destino do país, que em vez de o governar, cada vez mais impunemente se tem governado com ele.
A adoção das linhas vermelhas, o isolamento de Ventura e do Chega pelos partidos e a comunicação social situacionista deles dependente foi, afinal, para expulsar Ventura e excluir o Chega da nossa democracia. Ou seja, para essa gente, democracia, democratas e eleitores esclarecidos só há quando os usam, quando lhes servem.
Mas a liberdade, os direitos, a democracia, só o são se forem, para todos. Mesmo para os seus eventuais inimigos.
3. E agora? Depois de março muito provavelmente a maioria dos portugueses voltará a votar. Ventura devolveu-lhes a esperança, porventura ilusão, de que poderá valer a pena fazê-lo. Se o Chega continuar a crescer como sempre tem crescido em cada ato eleitoral, tudo será diferente, ‘um choque elétrico no porco [há muito] adormecido’. Como há muito urge.
E se assim acontecer muito dependerá então do que Ventura quiser e for capaz de fazer.
Tendo sempre presente a possibilidade tranquilizadora de recorrer ao maior dos méritos da democracia: podermos com ela mandar para casa os maus governantes, como nestes últimos anos não fomos capazes de fazer. E – se vier a ser caso disso, como muitos, porventura com razão, temem – resta saber se haverá, então, como não tem havido nestes anos devastadores, um número suficiente de democratas e homens livres para o fazerem.