Telefonaste-me ao fim da manhã e disseste: «Tiraram-me um pé…». Só assim, como se tivessem tirado um dente. CPS: é como te tenho gravado. Outro número que não tocará mais mas que me recuso a apagar. Tal como o do nosso gordo, o Carlos Machado, teu irmão, outra das pedras que arrancaram da tua estrutura. Deem-me o direito de sentir que, um dia qualquer, posso ligar para os meus mortos, pode ser? Tiraram-te um pé mas não te tiraram o humor: escreveste Ao Pé Coxinho. Mandaste-mo, tinhas esse gosto especial em saberes de que gostava de muitas coisas que escrevias. Mariquices de camaradas, direi eu. Trabalhei contigo em A Bola e em O Jogo. Tu no Porto, eu em Lisboa, mas isso pouco importava, a nossa camaradagem não tinha distâncias nem se media a quilómetros. Ajudaste-me, e eu ser-te-ei sempre grato, quando os processos vindos do FC Porto me punham a caminho de Gaia e do Bolhão e quase todos aqueles que eu conhecia em jornais fugiram de mim como se tivesse peste. Até comentários de futsal me marcavas para eu ganhar uns tostões na NTV, num tempo que saltava da Amora para Odivelas.
Depois houve aquela noite. 4 de março de 2001. Ficámos madrugada fora na redação d’O Comércio do Porto a imaginar títulos para a primeira página, a receber testemunhos, a virar fotografias do avesso. Uma ponte caíra em Entre-os-Rios. E nós, contornando o drama, apaixonados pela paixão que nos devorava a martelar no QWERTY dos computadores – o teu tinha a fotografia da Julia Roberts – a sair quase manhã para irmos comer ovos verdes ao Pajú. Outras vezes, pelo teu orgulho leceiro, tripas enfarinhadas ao Costa do Castelo. Sabes? Diverti-me muito no tempo em que me abriste as páginas d’O Comércio do Porto quando tantas outras se me fecharam na cara. Tinhas jeito de chefe sem querer ser chefe, uma timidez nesse sorriso com falha entre os dentes da frente, bastavam duas ou três frases para que nos entendêssemos. Uma nuvem negra começou a surgir no teu horizonte e tu sabias o que aí vinha. Pedra a pedra, caíste como uma ponte. «Tiraram-me um pé». A diabetes que te comia. O Blaise Cendrars ficou sem uma mão e escreveu La Main Coupé. Foste Cendrars também, por um momento. E, como dizia outro que partiu ainda agora, o António Florêncio: «O Jacques Ferrain da Campanhã». Vejo-te à secretária. Estás impecável, meu querido. Esquece o pé. Não se nota nada.