Mafoma. Se calhar o Cara-feia não era assim tão feio quanto isso

Desventuras da viagem de um jornalista de Riade até ser barrado nos portões de Meca e desviado para Jeddah cuja origem se perde na poeira do Tempo, tendo por fundo a vida extraordinária daquele que se chamou Abū al-Qāsim Muhammad ibn ʿAbd Allāh ibn ʿAbd al-Muttalib ibn Hāshim…

JEDDAH – Pensei em fazer-me passar por muçulmano, mas convenhamos que, só por não ter tocado numa gota de álcool nos últimos dez dias, os guardiões da cidade de Meca não se iriam deixar engazopar. Fico ao longe, junto aos dois blocos de betão cruzados como se fossem cimitarras, e não vou para além de um vislumbre da cidade proibida a todos os que não professam a religião islâmica. Makkah al-Mukarramah, chamam-lhe os sauditas. Meca, a Honrada. O local mais sagrado do islão. De onde lhe vem o nome, ninguém sabe ao certo: Makkah terá sido o primeiro nome dado ao vale onde se situa. De Riade até aqui são cerca de 870 quilómetros de uma paisagem monótona, quase lunar. Depois, porque nada há a fazer, mesmo que jure a pés juntos saber recitar de cor o «lā ‘ilaha ‘illāl-lāh an Muhammadur rasūlu llāhi», o Shahadah, o primeiro dos cinco pilares do islamismo, que pode ser traduzido como «Não há outro deus além de Allah e Muhammad é o mensageiro de Allah», não sigo em frente pela auto-estrada larga que conduz a uma das mais misteriosas cidades do mundo. Sigo, portanto, ligeiramente para nordeste, a caminho do Mar Vermelho, e para a calorosa receção de Jeddah, muito provavelmente a mais bela de todas as cidades da Arábia Saudita e, certamente, a mais ocidentalizada. Segunda urbe do país com mais de três milhões e setecentos mil habitantes, com as suas encantadoras varandas de madeira coloridas, porto através do qual muitos muçulmanos chegam a Meca para cumprir o Haj, peregrinação à cidade sagrada que todo o bom religioso deve fazer pelo menos uma vez na vida, visitando o lugar onde se encontra a Pedra Preta, que teria sido dada a Abraão pelo anjo Gabriel. O Haj deve durar seis dias e tem lugar no último mês do calendário muçulmano. As orações feitas neste período devem ser uma para cada dia de peregrinação e os peregrinos devem dar sete voltas ao redor da Caaba. Depois rumam  vão para a Minah, ponto alto da cerimónia: a reza no monte Arafat, local onde Maomé teria feito seu último sermão.

Sentado num banco do jardim Al-Andalus, à beira da Al Kurnayash Road e do monumento oferecido à cidade pelo pintor e escultor catalão Joan Miró, recebo uma brisa com cheiro a salsugem e disperso-me na leitura sobre a vida de Maomé, como o portugalizámos Mohammad, um homem que tinha como nome completo Abū al-Qāsim Muhammad ibn ʿAbd Allāh ibn ʿAbd al-Muttalib ibn Hāshim, nascido precisamente em Meca, a 25 de Abril de 571 e falecido a 8 de Junho de 632 em Medina. Para os muçulmanos, Maomé era um fulano completo: não se limitou a ser o profeta dos profetas (os outros foram Jesus, Moisés, Davi, Jacó, Isaac, Ismael e Abraão), mas foi um líder militar capaz de unificar um número de tribos árabes que se lançaram na conquista do mundo e criaram um califado que se estendeu daqui, do Golfo Pérsico, até à Península Ibérica. Se o nome Mohammad significa louvável; Abd Allãh significa servo de Deus. O maomé que adotámos vem do francesismo Moamêt, que vem, por sua vez, do turco Menmet.

Há que dizer que o pobre Maomé viu o seu nome maltratado por tudo o que foi borra-botas que teve conhecimento da sua existência, e não é preciso fazer esforços de bestunto para calcular os milhões e milhões de indivíduos que o citaram. Na África negra, por exemplo, passou a ser Mamadou; na África do norte, entre os berberes, preferiram a designação de Mohand. Já quanto a nós, não tivemos o mínimo respeito e atingimos a raia do insulto.

A cara feia…

Consultar a forma como os portugueses se referiram a Maomé ao longo da história atira-nos para um nunca mais acabar de alcunhas e de trapalhices. Ora veja-se: Mafoma, Mafamede, Mafomede, Mafomade, Mahamed, Mahoma, Mahomet, Mahometes ou Mahometo. Mas Mafamede ou Mafoma tornaram-se as mais populares, sobretudo a partir do momento em que lançámos para o éter a frase inesquecível: «Disse dele o que Mafoma não diria do toucinho». Sabemos todos que os muçulmanos têm uma aversão bastante razoável em relação a tudo quanto é carne de porco e os motivos não são simplesmente religiosos, embora não vá entrar aqui por esses ínvios caminhos porque, para tal, precisava de bem mais das páginas de que disponho. Mas Mafoma tinha todo o direito de comer o que bem entendesse e até de viver só de tâmaras se estivesse para aí virado.

Ao consultar o significado da palavra Mafoma nos dicionários que temos por aí à disposição vamos encontrar a muito pouco agradável designação de Cara-Feia. Ora bem, a religião islâmica não é de todo dada à iconologia, de tal forma que não existe nenhuma representação da figura humana de Allah e sim apenas um símbolo escrito do seu nome. O mesmo sucede com os restantes profetas, sendo que o Maomé imagético surge em publicações da responsabilidade de outras religiões. Na maioria dessas representações nada nos conduz para a afirmação de que Mafoma, a despeito do nome, fosse um tipo horroroso, ou algum deformado como o Homem Elefante, esse desgraçado cidadão britânico chamado Joseph Carey Merrick (5 de Agosto de 1862 – 11 de Abril de 1890) que, por ter vindo ao mundo com uma horrenda deformação genética, suscitou não apenas o interesse popular mas igualmente o interesse da comunidade científica. Conclui-se, assim, que Mafoma é fruto de uma pequenez mental de quem o quis diminuir perante os leitores das suas façanhas ou dos seus atos religiosos e bélicos. Calculo que Maomé tenha encolhido os ombros perante a desconsideração, se alguma vez veio a saber dela. Para os seus seguidores, que são monoteístas, era, bem pelo contrário, o mais perfeito dos seres humanos, a ponto de só ele poder passar aos crentes as palavras de Allah. 

A 80 km de onde me encontro, nessa cidade onde os portões estão fechados para gente como eu, Abū al-Qāsim Muhammad ibn ʿAbd Allāh ibn ʿAbd al-Muttalib ibn Hāshim nasceu para ser pastor e foi-o durante a meninice e a juventude. Já quase com 40 anos, num dos retiros espirituais que costumava fazer nas cavernas do Monte Hira, surgiu-lhe o anjo Gabriel (uma espécie de carteiro divino) ordenando-lhe que recitasse os versos enviados e se tornasse o último profeta que Deus haveria de enviar aos homens. Cristo já fora crucificado e morto há 577 anos. E Mafoma não falou pela voz de Allah não na tentativa de rejeitar o judaísmo e o cristianismo, as duas religiões monoteístas conhecidas pelos árabes, mas sim declarar tinha a ordem dada por Deus de restaurar os ensinamentos originais destas religiões. Foi perseguido, fugiu para Medina numa migração conhecida como a Hégira (a tradução é literal), e aí fundou a primeira comunidade muçulmana. O homem que os portugueses acusavam de ser feio como o Demo, era admirado pelas mulheres e, embora a lei islâmica só permita a um homem tomar quatro esposas, Maomé chegou a ter quinze. Imaginem o que seria se Mafoma fosse algum Omar Sharif…