Notificação desta semana de um canal noticioso: ‘Ministra da Cultura francesa ameaça converter cão do primeiro-ministro em kebab e ofende ministro da Economia’. Não é piada de mau gosto e se quiserem conferir basta ler o Le Monde, onde também ficam a saber da guerra cultural contra a possibilidade de Aya Nakamura, franco-maliana e a cantora francesa mais ouvida no mundo, poder vir a cantar uma música da Edith Piaf na abertura dos Jogos Olímpicos de Paris. Rasgam-se as vestes porque não é suficientemente francesa.
A digerir a informação, leio mais uma notícia sobre a prestigiada Sciences Po, onde uma estudante judia de 20 anos, membro da União de Estudantes Judeus na França, entre gritos de ‘não a deixem entrar, ela é uma sionista’, foi impedida por manifestantes pró-Palestina de assistir a uma conferência. Culpou-se a polarização instalada com o conflito Hamas-Israel, mas a verdade é que os estudantes judeus de Paris não podem ser culpados pelo que se passa no Médio Oriente. Há uma justificação: antissemitismo. Da mesma forma que em muitas outras situações é islamofobia. Há muito que os muçulmanos, sob diversos pretextos, estão a ser indiferenciadamente rotulados de assassinos e terroristas, ao abrigo de discursos divisionistas e profundamente preconceituosos, que escancaram as portas à discriminação e à violência.
No país da ‘liberdade, igualdade e fraternidade’, este retrato, que é o de muitos outros países, ilustra bem a progressiva degradação do espaço público que temos vindo a assistir, cada vez mais sustentado numa cultura de intolerância, violência e extremismo, onde o ‘outro’ é o inimigo, numa perigosa lógica de desumanização que tudo permite. Por entre sentimentos de desconfiança e clima de impunidade, o fosso entre a teoria e a prática nunca foi tão grande, fornecendo oportunidade e justificação para muito do que acontece.
Veja-se o Reino Unido, onde o primeiro-ministro, campeão da igualdade, ficou feliz com um simples pedido de desculpa de um doador do partido conservador, após este dizer que Diane Abbott, primeira afrodescendente eleita deputada no país, o fez ‘querer odiar todas as mulheres negras’ e que ‘devia levar um tiro’. Isto depois de, numa demonstração de firmeza contra a intolerância e defesa da democracia, ter anunciado no início do mês uma duvidosa nova definição de extremismo, que permitirá identificar e censurar previamente, sob a forma de lista pública, todas as organizações e indivíduos extremistas.
Portugal, com as suas nuances, não foge à regra. Basta passar os olhos pelo que se escreve com total impunidade nas redes sociais, ou, já agora, nos muros das Universidades. Isto para não falar no que ouvimos – e lemos – aquando da campanha eleitoral. Ofensivas generalizações a rotular imigrantes de terroristas e investidores israelitas de sionistas, entre outros exemplos.
Vivemos tempos desafiantes. Uma Torre de Babel da modernidade, onde ninguém se ouve e ninguém se entende. Formam-se tribos de iguais, que perdem a riqueza do pluralismo e do debate. Somos filhos da liberdade, mas reina a absoluta intolerância para com o ‘outro’, bode expiatório das insuficiências da democracia e do sistema. E nem a História nos vale, despida tantas vezes da verdade dos factos em nome de diferentes sensibilidades, sem sequer se pensar nas vítimas. Se não trabalharmos para uma comunidade onde as pessoas são ouvidas, compreendidas e protegidas, a pluralidade vai virar fragmentação e o que outrora nos fortaleceu será a raiz da nossa fraqueza.
No ano em que festejamos os cinquenta anos do 25 de abril façamos uma reflexão séria sobre o caminho trilhado e saibamos reconhecer que a liberdade e a igualdade são valores que nunca podemos nem esquecer, nem desproteger. Este é o fardo do nosso tempo. Saibamos reconhecer a sua existência, sem nunca dobrar sob o seu peso.