Mazagão. ‘Perguntei ao vento /onde foi encontrar…’

Vitorino cantou-a e marcou-a na Queda do Império: ‘Foi nas ondas do mar/Do mundo inteiro/Terras da perdição/Parco império mil almas/Por pau de canela e mazagão’. Foi a última grande praça forte desse sonho português de dominar os mares do mundo. Hoje chama-se El Jadida, fica a hora e pouco de carro a sul de Casablanca…

Vitorino cantou-a e marcou-a na Queda do Império: ‘Foi nas ondas do mar/Do mundo inteiro/Terras da perdição/Parco império mil almas/Por pau de canela e mazagão’. Foi a última grande praça forte desse sonho português de dominar os mares do mundo. Hoje chama-se El Jadida, fica a hora e pouco de carro a sul de Casablanca e ainda tem um velho charme lusitano.

EL JADIDA – Tudo se mistura de uma forma quase incorpórea: francês e árabe. E o reflexo dos portugueses em ambas as línguas, nós que deixámos a praça forte da cidade definitivamente em 1769, fruto do tratado de paz assinado com o rei Mohammad III de Marrocos. Enfim, deixámos não será o termo absolutamente correto. Foi mais, como canta o Vitorino, a Queda do Império, sim, porque Mazagão ficou para a História como o último baluarte português do Norte de África. Manuel José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, tinha mau perder. Tinha mesmo muito mau perder. Apesar do tratado assinado para que, no dia 10 de Março, as forças militares lusas abandonassem a cidade, não deixou de armadilhar esse momento de forma muito pouco cavalheiresca: embarcaram na Porta do Mar (hoje chamada de Cité Portugaise), mas o terreno ficou minado de tal maneira que, quando os soldados marroquinos vieram tomar o seu lugar, uma enorme explosão abateu a entrada do porto e o edifício denominado Baluarte do Governador. Uma chacina. Chacina essa que deixou Mazagão desabitada por muitos anos e lhe atribuíram a alcunha de Al Mahdouma – As Ruínas. Depois, toda a população da cidade foi levada para o norte do Brasil, atual Estado do Amapá, e aí se fundou a Nova Mazagão que, tendo desaparecido a original, passou a ser só Mazagão, como está bem de ver. Por isso digo que deixámos não é o termo correto: no fundo transferimos as gentes da África do Norte para a América do Sul. E a urbe recém-criada para receber os que vinham do outro lado do Atlântico acabaria por ser desenhada por um arquiteto italiano, como também era muito recorrente na altura (Lisboa pós-terramoto que o diga), um fulano chamado Domenico Sambucetti, natural de Génova, que tanto tempo passou em Portugal que acabaram por lhe aportuguesar o nome para Domingos.

Mistérios de um nome

Desvio-me e muito desta estrada que liga Casablanca, onde aterrei, até El Jadida. São cerca de cem quilómetros paralelos ao mar, para sul primeiro e, depois, ligeiramente para oeste já que o meu destino se encontra num promontório que entra bem mais pelo mar dentro do que a cidade que Michael Curtiz, à custa de Humphrey Bogart e de Ingrid Bergman, transformou num ícone do cinema. Venho em busca de um português, Jorge Manuel da Silva Paixão Santos, natural de Almada, tal como gosto de ir ao encontro dos que, por causa do futebol, demandam os lugares mais estranhos do mundo, como aconteceu com Orlando Costa, nos Barbados, ou com Luís Castro e Pedro Emanuel, na Arábia Saudita, para citar os mais recentes. Venho em busca do lugar e das imagens que ficarão para sempre guardadas para a vida, incentivado por uma sede de viajar, de viajar sempre, de não deixar que nenhum pedaço do mundo se me escape. Mazagão agora. O lugar remoto do Império que se desfez. O Vitorino canta-me na memória à medida que o veículo devora os nacos de alcatrão: «Perguntei ao vento/Onde foi encontrar/Mago sopro encanto/Nau da vela em cruz/Foi nas ondas do mar/Do mundo inteiro/Terras da perdição/Parco império mil almas/Por pau de canela e mazagão». Curiosa esta mazagão com letra minúscula quando a sua toponímia é tão misteriosa. As primeiras versões sobre a matéria dão-na como vinda da expressão árabe El ma Skhoun, um local edificado cuja tradução poderia materializar-se como Água Quente. Depois, o francês André Privé veio defender a teoria mais simples, de que se trata do aportuguesamento de “mazergan”, palavra que significa amolar. Mazagão ficou até passar a ruínas e renascer delas como El Jedida. Em 1486 já a coroa portuguesa reclamava a posse do lugar. Mas foi só com a chegada dos irmãos Diogo e Francisco de Arruda (este Francisco de Arruda teve a arte de ser arquiteto e, como tal, responsável pelo desenho da Torre de Belém) que se ergueu uma fortaleza definitiva no local. Estávamos no ano de 1502 e Portugal já tinha sofrido alguns revezes na sua tentativa de colonização de Marrocos, sobretudo em Agadir, Safim, Alcácer Ceguer e Azamor. D. João III decidiu, então, fazer de Mazagão o grande centro da presença portuguesa na área, reforçando as suas defesas, aumentando a população, e com o recurso a mais um arquiteto militar italiano, Benedetto da Ravenna, para tornar o local mais inexpugnável possível. Tal como ainda relevam os restos da fortaleza de Mazagão, era uma habitual montagem de muralhas em forma de polígono, entrando pelo mar dentro, e com a povoação a instalar-se sob a proteção das paredes exteriores, possuindo um palácio para o governador, uma cisterna (que é um dos pontos turísticos de maior atração de El Jadida), e uma igreja, recebendo o nome de Castelo Real de S. Jorge.

Percorro as ruelas ao sabor da brisa salgada do mar. Interpreto as palavras do poema: «Pata de negreiro/Tira e foge à morte/Que a sorte é de quem/A terra amou/E no peito guardou/Cheiro da mata eterna/Laranja Luanda/Sempre em flor…». Mazagão tão perto e tão longe. Ponto terceiro da trilogia norte-africana: Ceuta, Tânger e Mazagão. Feroz local de resistência e terra abandonada na Queda do Império. O posto de polícia instalado na velha cidadela confere-lhe ainda, séculos passados, a autoridade das fardas e das armas. Umas palmeiras finas, quase raquíticas no tronco, mas florescentes no topo. Um minarete distante mas não é hora de nenhuma das cinco rezas do dia. Imagens difusas de desenhos antigos do grande cerco de 1562, mais de 150 mil homens comandados por Mulei Mohammad para, com a potência de uma esquadra bem montada, exigirem o refúgio do inimigo lusitano. Rui de Sousa, na ausência de Álvaro de Carvalho, o capitão do forte que se deslocara à metrópole, cerra dentes e mantém firmes, atrás de si, aqueles que suportarão os custos da batalha. Os meses passam e a situação cresce em insegurança até que cheguem reforços navais vindos de Lisboa. A batalha sem quartel. 117 portugueses mortos; 260 sobrevivem. Do lado do invasor é um desastre sublinhado a sangue: 25 mil mortos. Rui de Sousa é um dos que sobrevive. Mas ficará marcado para o resto da vida à custa de um golpe de sabre. E com metade do crânio queimado pela brutalidade do incêndio que se propaga num navio inimigo que chegou até à beira das muralhas. A que seria a última fortaleza portuguesa de Marrocos continua de pé. Observo-a ao pormenor. Sons de gritos brotam do passado. Ou talvez sejam só os pássaros.