Sento-me à secretária e só tenho certeza de uma coisa: não quero escrever isto! Uma mina rebentou na picada da manhã no mato do meu sábado. Fiquei surdo, e mudo, e paralisado. Às vezes brincávamos com as palavras do Manuel Alegre: «José, quantos almudes na tua aldeia? Na minha aldeia fazem-se mil almudes. José, a pátria somos nós, entendes?» A pátria tratou-o mal, a PIDE perseguiu-o, fugiu aos tiros do ultramar e chegou à Suécia na véspera de Natal de 1967. Não tinha um tostão no bolso, mas trazia o coração cheio de coisas para dar. Fez tudo: guia turístico, assessor de imprensa ou de logística por várias vezes da seleção nacional, da França, da Suécia e do Inter de Milão, correspondente de A Bola, organizador de torneios, fotógrafo de mão cheia. E mais que tudo amigo/irmão, todo ele lá de casa, tão querido dos meus pais, conhecendo os meus filhos desde meninos. Se eu pudesse ouvi-lo no meio desta surdez a que chamo solidão, ouviria: «Mira la montaña!», como diria o_Victor Jara. Sempre menino na sua ternura tão profunda, sempre querendo olhar para o lado bom da vida olhando as montanhas. Nem olhando a montanha, José, consigo fugir à violentíssima tristeza do teu adeus.
Vivemos juntos, trabalhámos juntos, ultimamente recordávamos sobretudo juntos. Era o seu Benfica, a sua Académica, a sua Coimbra desiludida onde veio morrer no dia seguinte a chegar de Estocolmo. Voávamos juntos sobre os planaltos dos poemas que dizíamos de cor como Nils Hölgersson montado no dorso de um ganso branco que voava com os patos bravos que tinham uma líder chamada Akka de Kebnekaïse. A Suécia deu-lhe a mulher e os três filhos, e os netos que se remexiam no sangue da sua ternura. De repente, à noite, ligava: «Como estás meu irmão?» E eu: «Estou no meu posto!» Ele também estava sempre no seu posto que assumiu de ser camarada, companheiro, embrulhando-nos no conforto do seu abraço enorme. Não, José Manuel, não consigo escrever isto, estou como Anto, desculpa, mas é Coimbra que tem a culpa, essa paisagem triste triste a cuja influência minha alma não resiste. Queria um teu último olhar. O trocar da frase: «Hej på dej, gamla ven…». Uma canção italiana ao fundo. E eu, agora, a precisar de reaprender a viver sem ti. Descansa. Continuarei no meu posto. Até que veja alguém mudar o turno e possa ir finalmente ao teu encontro.