Qualquer que seja a lista dos cem melhores romances do século XX, infalivelmente inclui Lolita, do norte-americano de origem russa Vladimir Nabokov (1899-1977), obra de 1955 que, se fosse hoje, com o movimento #MeToo à espreita, estaria condenada à maior reprovação possível. De qualquer forma, (ainda) não foi retirada dos rankings literários, alguns dos quais também incluem Fogo Pálido, que o autor publicou sete anos após Lolita.
Uma faceta porventura menos conhecida de Nabokov foi a sua incursão na lepidopterologia, o ramo da entomologia especializado no estudo científico das borboletas e mariposas, os chamados lepidópteros. Também se notabilizou nessa sua atividade, tendo sido curador da coleção de borboletas do Museu de Zoologia Comparada da Universidade de Harvard durante seis anos e publicado uma dúzia de artigos sobre taxonomia – área da biologia que se dedica à descrição e classificação dos organismos vivos -, os quais ainda se mantêm atuais. Durante anos a fio, recorreu ao microscópio, dissecou e desenhou os órgãos dos lepidópteros, examinou detalhadamente as subtis manchas das asas de espécies das Américas e da Europa e elaborou meticulosos diagramas. Mesmo sem possuir dados de paleontologia – a especialidade da biologia que estuda a vida do passado da Terra e o seu desenvolvimento ao longo do tempo geológico – conjeturou que, há milhões de anos, tanto a América do Norte como a do Sul foram povoadas por cinco ondas de borboletas procedentes da Ásia. Estas terão atravessado o Estreito de Bering e continuado para sul até ao Chile – uma ideia que, quase 70 anos depois, foi confirmada por análises de ADN.
É assinalável a lista de obras dedicadas ao interesse do escritor pelas borboletas, bem como à influência que esse interesse teve na sua própria escrita. Podem ser destacados Nabokov’s Butterflies: Uncollected and Unpublished Writings (1999), de B. Boyd e R. M. Pyle (eds.), Guide to Nabokov’s Butterflies and Moths (2001), de D. Zimmer, The Quill and the Scalpel: Nabokov’s Art and the Worlds of Science (2009), de S. H. Blackwell, e Fine Lines: Vladimir Nabokov’s Scientific Art (2016), de S. H. Blackwell e K. Johnson (eds.).
Segundo Dorion Sagan (filho do célebre astrónomo e comunicador de ciência Carl Sagan), um dos ensaístas que contribuíram para o livro Fine Lines, o mundo natural e a arte eram um continuum para Nabokov. Fine Lines desvenda-nos a ciência que se entrelaça na obra literária do escritor, que frequentemente surge de forma de simbólica. Em Lolita, por exemplo, o nome da cidade, Lepingville, deriva de lepping, termo que na gíria dos caçadores de borboletas significa perseguir os lepidópteros; Elphinstone, por sua vez, vem de Elphinstonia, um subgénero da borboleta branca Euchloe. A peça Os Caçadores Encantados, representada no romance, tem fortes associações a borboletas: Diana, a protagonista, não só é a deusa da caça como também é uma espécie destes insetos, a Speyeria diana. Edusa Gold, a professora de teatro de Dolores Haze (Lolita), evoca Colias edusa, designação outrora dada à Colias croceus. O nome da irmã, Electra Gold, alude à Papilio electra, agora conhecida como Colias electo.
Oriundo de uma família rica da aristocracia, foi desde a infância que Nabokov se dedicou ao colecionismo e ao desenho de borboletas, o que lhe valeu um intenso treino da memória e uma atenção aos mais pequenos detalhes. Quando o pai foi preso pelas autoridades russas por motivos políticos, o jovem Vladimir, com 8 anos de idade, levou-lhe uma borboleta quando o foi visitar. No museu que lhe é dedicado em São Petersburgo, na casa da família Nabokov, ainda hoje se encontra o exemplar da An Illustrated Natural History of British Butterflies and Moths (1870), de Edward Newman, com a imagem a preto e branco da Colias croceus que ele, ainda criança, devidamente coloriu de amarelo. Na adolescência, já descrevia cuidadosamente os espécimes que apanhava, para o que lhe serviam de modelo as revistas científicas que lia. Já escritor famoso, viria a admitir que, se não fosse a Revolução Russa, que forçou a família ao exílio em 1919, poderia ter sido um lepidopterólogo a tempo inteiro.
Não só Nabokovia viria a ser, em 1960, um género de borboletas, graças ao britânico Francis Hemming, como também, em 1993, o húngaro Zsolt Bálint descobriu no Perú uma nova espécie, a que chamou Madeleinea lolita, cujo género, Madeleinea, o autor de Lolita já tinha descrito em 1945.