– Vamos à Ucrânia.
– Estão doidos?
– Não, mas vamos à Ucrânia.
E fomos. Eu e o João, o jovem filho.
A Guerra lembra horror, mas também provoca indiferença. A única guerra que o rapaz conhece na intimidade é a do “Star Wars”. Eu ouvi falar de outras, cumpri sete meses de pena no Serviço Militar Obrigatório, li umas coisas, também vi uns filmes – mas todos sabemos que a vida é sempre pior que a película.
Fomos na companhia aérea Buzz (abelha) até Varsóvia, entre polacos e polacas de várias condições e situações. Desde a quase idosa de ténis estupidamente caros, aos trabalhadores emigrantes, passando por grupos de jovenzinhos borbulhentos, havia de tudo a bordo do avião da subsidiária polaca da Ryanair.
A Coca-Cola custa 3,25 euros: preço de Lisboa, portanto. Por distração deixei os dados do telefone ligados. E por coincidência, pouco feliz, no momento da descolagem soou o alarme da aplicação instalada no telemóvel que avisa sobre ataques russos (“Air Alert!”, disponível gratuitamente na App Store). Quem escapa à BUZZ, ou à velhinha, sobreviverá aos russos, aos seus mísseis balísticos e aos drones iranianos – foi este o reconfortante pensamento que me ocorreu naquele ambiente de Leste que não se deixava perturbar pelo número anormal de fatos-de-treino por metro quadrado.
A viagem até aos arredores de Varsóvia demorou quatro horas, sem contar com o tempo de atraso em Lisboa, de pé, numa fila, no exterior, enquanto se esperava que a abelha aterrasse, que os passageiros saíssem, que os hunos acalmassem.
O espaço aéreo ucraniano está fechado à aviação comercial e entrar pela fronteira terrestre polaca é melhor opção do que a da Moldávia. Segue-se depois por comboio, carro ou autocarro.
O taxista fala algum inglês e quando tem dificuldades usa o tradutor do telefone. Há greve de agricultores na Polónia, entre outras coisas contra Bruxelas e contra os preços dos cereais ucranianos. No vagar da fila de carros fomos conversando sobre a atualidade e ele não tem dúvidas:
1) A Ucrânia está a sofrer e ele simpatiza com a causa;
2) Esta guerra é, acima de tudo, pelos recursos naturais da Ucrânia (gás e lítio);
3) Zelensky está ao serviço dos russos, mas disfarça bem.
É lamentável que esta terceira ideia comprometa as duas primeiras.
Faz frio em Varsóvia. As polacas são lindas e igualmente frias. Também não viemos à Polónia para namorar, não é?
Depois de darmos entrada no hotel saímos à descoberta do sítio onde se levantam os bilhetes comprados online para o comboio do dia seguinte, que nos levará a Kiev ao longo de mais de 16 horas, talvez 18 ou 19. Uns dias antes, na CNN portuguesa, um militar-comentador com ar de admirador do ditador, perguntava e perguntava-se por que é que a Rússia ainda não tinha bombardeado a linha de comboio que liga a Ucrânia à Polónia. Não será amanhã: foi o reconfortante pensamento que me ocorreu.
A estação de Wschodnia fica do lado de lá do rio Vístula, depois do estádio Narodowy (nacional), onde naquele dia jogava a seleção e o trânsito gerou algum stress, até porque ainda tínhamos de comprar comida para a viagem – no comboio não há.
Tínhamos conseguido um compartimento com apenas dois lugares; chegámos na hora certa, instalámo-nos e esperámos pelo sinal de partida. O comboio é enorme. Descontando uns alemães que trabalham numa ONG, praticamente só se veem velhos, crianças e respetivas mães. Há muitas mães.
Num certo sentido, este foi o nosso primeiro contacto com a guerra. Vamos para uma terra onde toda uma geração de homens foi mobilizada, os que não foram não podem sair do país, e os que ainda não foram vivem a angústia de poderem ser chamados a qualquer momento. A esperança no futuro não se perde porque os ucranianos estão habituados ao sofrimento: sobreviveram a Estaline, em 1932 passaram pela Grande Fome, “Holodomor”, e por um dos períodos mais horríveis da sua História: o canibalismo. O holocausto comunista aniquilou milhões de pessoas.
A noite a bordo do fleumático e velho comboio alemão agora ao serviço dos ucranianos é lenta e estranhamente silenciosa. No início ainda se ouvem umas crianças a cacarejar, mas cedo adormecem. Os alemães do compartimento ao lado pareciam estar a planear algo de grandioso, mas afinal entretinham-se num jogo, como percebi quando lá fui perguntar se sabiam como se passava a fronteira. Sabiam pouco, ou eram apenas desconfiados. Seriam espiões? E o que pensariam eles de nós?
O alarme da aplicação voltou a tocar, era mais um aviso de eventual ataque. E este foi o nosso segundo momento de contacto com a guerra: já não é apenas uma sirene distante numa aplicação com voz dramática: «Attention air raid alert, proceed to the nearest shelter, don’t be careless, your overconfidence is your weakness». A partir de agora era a sério.
No caminho feito de ferro iríamos passar por três Oblast (regiões) rumo a Kiev. A paragem na fronteira polaca durou duas horas, mais quase outras duas para ajustar o comboio à bitola ucraniana (a bitola é a distância entre linhas) e mais duas horas no lado ucraniano.
Cada vagão tem um responsável que também é revisor. Coube-nos um ucraniano de meia-idade que conhece três palavras em inglês e fala por gestos. Parece ter saído de um filme de Wes Anderson. Mostra subserviência aos guardas e arrogância aos passageiros. A meio da noite o comboio para e o funcionário bate bruscamente às portas para avisar que estamos na fronteira. Militares polacos, enormes, entram pela carruagem, ligam as luzes e identificam-nos. Levam os passaportes. Volta o silêncio. E depois voltam os militares. O polaco enorme e com ar simpático devolve-nos o passaporte sem perguntas nem outros pedidos, mas deixa um aviso-enigma: «Good luck!».
Este «good luck» provoca o João, que me olha de lado como quem diz: «Estamos feitos».
– Calma, acho que ele diz isso a todos.
Já não sei onde estamos. Está frio e escuro. Ouvem-se vozes indistintas. O comboio para em Chelm (ainda na Polónia), vai até à Ucrânia, depois volta para trás. Militares ucranianos verificam passaportes, como já tinha acontecido do outro lado. Um funcionário dos caminhos de ferro entra no nosso compartimento duas vezes, ou terão sido três, para ajustar os rodados aos carris ucranianos. Ouvem-se ferros a bater, um martelo, e um ferro a entrar num buraco. Partimos sem nunca termos saído do compartimento porque não se pode ir a terra.
O dia começa a nascer. Passámos por cidades-fantasma, campos castanhos e casas pobres. Chegámos a Kiev, capital do país que é o escudo da Europa e onde se morre diariamente para combater a ditadura de Moscovo, à hora de almoço. A fome aperta.
A Praça da Independência é o centro mágico e político de Kiev e da Ucrânia. As primeiras imagens que vimos nas televisões – lembram-se? – eram de lá. A poucos passos, subindo a colina, chega-se ao palácio Marinsky, onde mora o presidente. Na verdade, não se chega, porque só ultrapassa o controlo militar quem tem salvo-conduto. E o presidente também não deve parar muito por lá. Por questões de saúde, claro.
Kiev vive este tempo em permanente confronto com o destino. Eles são teimosos e orgulhosos. Distantes, mantêm a mesma temperatura que o inverno. Se não nos tivessem dito que havia uma guerra pensaríamos estar numa qualquer cidade fria do Leste europeu com a sua arquitetura, ora elegante, ora soviética, sempre bonita e de cores suaves. Às vezes parece Paris. As pessoas passeiam nas ruas, almoçam nos restaurantes, choram os seus mortos, rezam, bebem e ouvem música. Continuámos ao frio das ruas e depois aparece um edifício tipicamente soviético, depois mais uma igreja e depois a Ópera e depois olha-se melhor para aquelas pessoas decididas a viver.
Talvez seja este o principal ensinamento desta história: os ucranianos tomaram a decisão irrevogável de viverem em liberdade. Ou morrerem a lutar por ela.
Comemos qualquer coisa e depois fomos ver igrejas ortodoxas. Estava frio e o cansaço tomou conta de nós. No bar do hotel há uns vultos em movimento, não há turistas (ou melhor, há dois).
No dia seguinte acordamos por volta das oito, seis em Lisboa. A aplicação não mente: houve alerta de ataque aéreo durante a noite – e não ouvimos nada. Viemos a saber, pela SIC Notícias, que os destroços de um míssil foram reportados num subúrbio. A correspondente do canal vai fazendo peças sobre o dia-a-dia. Tentei por vários meios falar com ela, mas não nos respondeu. (Fomos sabendo da Pátria pelos jornais e pela SIC, fazendo streaming do telefone para a televisão do quarto pela app da OPTO. Adoro estas magias modernas).
O nosso segundo dia foi passado a andar a pé pela cidade, a ver museus vazios (as peças foram retiradas), o memorial e museu da II Guerra, a monumental estátua da Mãe-Pátria, outras igrejas, a beber dois “Eastern Standard” (uma ideia original imperdível do Soho House) no bar do nosso hotel (taxa de ocupação nos 40%, só ucranianos), a jantar num restaurante georgiano sofrível, e a ouvir música num bar algo alternativo, o HVLV.
O Tym tem praticamente a idade do João e bebe um pouco demais, mas é informado e adora Portugal. E também conhece o ícone pop Cristiano Ronaldo. Mas sabe muito mais da nossa história gloriosa, da luta pela independência, das tentações imperialistas de Espanha e da nossa capacidade de resistência.
«We are fucked, and you are fucking legends, ‘cause you are free – and we are fucked». Eis a doutrina Tym, repetida (talvez) vezes de mais. Felizmente há recolher obrigatório à meia-noite e às 11h o bar fecha.
O Tym estuda e trabalha. Não pode sair do país, mas pode vir a ser mobilizado para a guerra. Percebe-se o desespero e perdoa-se o exagero.
Ele acha que eu e o João somos amigos. Quando lhe digo que o John é filho, o pobre do Tym ainda desanima mais: «Ah! Se eu tivesse um pai ‘assim’…». Pois é, João: golaço de meio-campo.
O que é o “medo”, ou “ter medo”?
A meio daquela noite tive resposta a estas perguntas. O alarme da aplicação tocou e poucos segundos depois ouviu-se a sirene no exterior a ecoar na noite. Acordei estremunhado e acordei o João. Tínhamos combinado NÃO ir para o abrigo situado na cave, como faz a maioria dos locais.
Ouvem-se passos e pessoas a entrar no elevador em direção ao “shelter”. Ficámos acordados, apenas a luz morta da cidade passava pela janela. Os minutos andavam e o sono apertava. Uma meia hora depois ouve-se um som abafado, longo, a aproximar-se e a passar por cima de nós. Um segundo depois as baterias antiaéreas disparam e logo de seguida ouve-se uma enorme explosão. Kiev estava a ser atacada.
Fomos à janela. Há luzes a acender num prédio baixo. Ao longe mais disparos. E depois o silêncio. Conseguíamos ouvir o nosso próprio batimento cardíaco.
Não houve mortos nem feridos. O míssil foi intercetado e Kiev sobreviveu mais uma vez.
A manhã seguinte começou fria, como sempre, mas ainda estou um pouco atordoado com a noite e com a falta de sono. Hoje vamos à opera, jantar a um restaurante francês, fazer quilómetros a pé, andar de metro e ver as suas esplendorosas estações soviéticas a 80 metros de profundidade – porque há vida na cidade. Amanhã vamos visitar as regiões bombardeadas em 2022 (passam agora 2 anos) de Borodianka, Bucha, Andriivka, Irpin, e temos de sair cedo.
O guia tem 33 anos, trabalha numa organização que faz desminagem e está pronto para ir para a guerra ou lutar enquanto civil. Tem uma metralhadora AK-47 em casa.
Mal saímos dos limites da cidade a aplicação volta a avisar de um ataque aéreo. O míssil balístico foi lançado a partir da Crimeia e percorreu os cerca de 600 quilómetros em três minutos. Foi intercetado, mas os destroços atingiram um edifício da universidade. A mãe de Yen trabalha e vive naquela zona da cidade; a mulher, economista na Antonov, vai fazendo atualizações pelo telefone. Dois prédios foram destruídos, há feridos, mas ninguém morreu.
Em cerca de seis horas percorremos as cidades mais afetadas ou devastadas nos primeiros dias da invasão russa. Na mesma altura em que Zelensky dizia aos americanos que não precisava de boleia (para escapar aos russos), mas de munições – o que enuncia alguma coisa sobre a forma como inicialmente a administração Biden olhou para o tema – um pequeno grupo de milicianos com armas ligeiras, caçadeiras e muita coragem, atiraram aos russos e provocaram o pânico do lado do inimigo levando-os a fugir.
Os primeiros militares de Putin a chegar às portas de Kiev (sim, porque estamos a poucas dezenas de quilómetros da capital) eram miúdos impreparados, esfomeados, com origem nas regiões mais pobres da Rússia. Assaltaram casas, pilharam, violaram, torturaram sem piedade. Não tinham comando nem moral. Vinham da miséria e julgaram ter encontrado num televisor velho ou num smartphone o melhor a que podiam aspirar.
Assassinos selvagens, gente sem alma nem nada
Quando Bucha foi recuperada descobriram-se os corpos de 458 pessoas. Havia cadáveres com mãos atadas nas caves de uma escola. Descobriram-se valas com corpos. Pessoas chacinadas nas sarjetas.
Agora, ao percorrermos aquelas ruas, ainda vemos destruição, mas já vemos esperança. Na mesma avenida de Bucha onde há dois anos foram massacradas dezenas de pessoas há casas refeitas, alcatrão impecável; a escola na rua principal é nova e as crianças jogam futebol num campo que tinha sido atacado. Há prédios inteiramente destruídos e outros acabados de fazer, alguns com a ajuda da Fundação de Warren Bufftet.
A Ucrânia é dura e os ucranianos não desistem facilmente. O psicopata de Moscovo subvalorizou-os. Há quem diga que não, que o ataque a Kiev foi uma manobra, porque o que ele quer são apenas os recursos naturais da parte Leste do país e o acesso ao mar, no Sul – lembram-se da conversa do taxista polaco? Não pode ser verdade: Putin falhou a tomada de Kiev e tem continuado a falhar.
E que sentido fazem os ataques dispersos à capital nas últimas semanas? Não é guerra psicológica, porque ninguém deixa de viver só porque há mísseis no ar, ou mesmo a acertar. A Rússia é rica, tem recursos, tem uma ditadura e um povo disciplinado. Zelensky tem ajuda do Ocidente e um povo determinado que o apoia e desculpa. Para ganhar esta guerra Putin tem de arrasar todas as cidades e matar todos os ucranianos, até ao último.
Ao longo da estrada há muitos check-points com homens armados. Não se podem fotografar instalações militares (às vezes esquecemo-nos que vigora uma Lei Marcial). Os enormes campos agrícolas estão a ficar verdes. Outros, muitos, são campos de minas. Os russos deixaram para trás milhares de bombas ao retardador. Há equipas internacionais a desminar esses campos: aconselham-nos a não parar nem entrar.
Vão ficar vestígios ao longo de décadas. Os russos não conquistaram Bucha e arredores, mas conseguiram deixar a sua marca: campos que não podem ser cultivados, famílias destruídas, prédios bombardeados e uma memória de barbárie.
De regresso a Kiev houve mais um alarme. Ninguém se comoveu, porque, já sabemos, tem de haver vida para além da guerra.
As últimas horas foram passadas a visitar a Catedral de Santa Sofia e os seus mais de mil anos de história. Voltámos à Praça da Independência e comprámos autocolantes com as cores da Ucrânia. Antes disso fomos ver a destruição causada pelos fragmentos do míssil balístico abatido no dia anterior num departamento de Arte da Universidade.
Jovens artistas procuram pinturas esquecidas nos escombros. Há militares, bombeiros e polícias. E há, sobretudo, a devastação da guerra e a tristeza nas caras de quem perdeu o seu lugar de trabalho e estudo. Pedimos a uma vigilante uma pintura apanhada entre as pedras, que trouxemos com todos os cuidados ao longo da viagem de volta a Varsóvia. A nossa relíquia.
Desta vez éramos quatro no compartimento do comboio. O João, eu, o Sasha (fará sete anos dia 6 de maio e conhece o Bruno Fernandes e o Ronaldo, adora futebol) e a mãe dele, uma mulher muito jovem e bonita que dizia ir visitar a família à Irlanda. O alerta voltou a tocar, mas foi por pouco tempo.
Antes de tudo isto, no hotel, o nosso amigo da receção ofereceu-nos sem hipótese de recusa uma garrafa de Prosecco. Era uma espécie de compensação por uma falta de energia no quarto. O que se faz com uma garrafa de Prosecco?
Assim que o comboio arrancou, e depois de conhecer os detalhes familiares dos companheiros de viagem, descobri um velho frigorífico no pequeno espaço do funcionário-revisor, Nikolai, que não fala uma palavra em inglês, mas comunicámos pelo tradutor do telemóvel.
Umas horas depois, já íamos a meio da viagem até à fronteira com a Polónia, a garrafa estava fria e o Nikolai salivava. Enchi-lhe um copo e depois outro. Ele, reconhecido, ofereceu-me um enchido de carne gorda que não consegui rejeitar e ainda uma espécie de panado de carne que ele pegava nas mãos gordas e sujas enquanto exibia o dente de ouro.
Ao terceiro copo ergueu a mão, cerrou os punhos e disse no seu melhor ucraniano: «Slava Ukraini!». Ao que respondi no meu melhor ucraniano: «Slava Ukraini!». E depois, juntos, erguemos os copos e dissemos em conjunto: «Slava Ukraini!».
*O autor é o CEO da JLM & Associados, ex-jornalista, escreve de acordo com a ortografia moderna e viajou com convicções e expensas próprias.