‘Só quero sair desta tenda’

Chegam a Portugal e aquilo que encontram não é o que lhes pintaram. Não têm documentos, vivem na rua e estão à mercê da ajuda das pessoas. Querem uma casa, seja ela onde for, mas os ativistas parecem querer interferir em demasia

O barulho das sirenes contrasta com o canto dos pássaros. O céu está azul. Estamos na capital. Há já algum tempo que a Praça de Espanha se tornou num grande espaço verde onde uns desfrutam da sua pausa de almoço, outros – com um ar mais descontraído – fazem piqueniques e outros, sentados nos bancos, leem um livro ou observam os que fazem a sua corrida diária. São 13 horas. O espaço está repleto de flores pintadas de várias cores. Escondidas entre alguns arbustos, vemos tendas. 

Sem  ajuda

Ao aproximarmo-nos de duas tendas e um pedaço de cartão forrado com lençóis dispostos no edifício central que ainda está em obras, Tó recebe-nos com um sorriso rasgado, mas marcado por uma vida complicada. Tem 50 anos e nasceu na Guiné. «Vivo em Portugal há 27 anos. Infelizmente ainda não tenho nacionalidade e, como estou ilegal e não posso trabalhar, não consigo sair das ruas», explica ao Nascer do SOL. Houve uma altura em que conseguiu trabalho, mas hoje não recebe absolutamente nenhuma ajuda. «Trabalhei na construção civil, desconto na segurança social. Mas sempre que bati à porta da Santa Casa, infelizmente e incompreensivelmente, não me deram ajuda nenhuma. A palavra é sempre ‘não’ e eu não compreendo porquê. Nunca matei ninguém, nunca roubei, sou um cidadão comum», desabafa enquanto arruma as roupas que carrega num grande saco de compras. Tó vai mudando de lugar. «Hoje estou no Rossio, amanhã na Avenida da Liberdade, depois nos Anjos. Tento encontrar locais onde seja menos complicado passar a noite», continua. Há dois anos arranjaram-lhe um albergue. «Era um antigo quartel da GNR nos Anjos. Fiquei lá um ano, depois expulsaram-me pelas provocações de um monitor que lá estava connosco», lamenta. Segundo o mesmo, as condições eram «boas». Havia comida e estava tão grato que chamava ao espaço «o Palácio da minha vida».  «Luto pelos meus documentos, mas não é fácil conseguir. Já trabalhei sem papéis, mas não gosto. Não desconto. Não é aconselhável socialmente e eu gosto de ser cumpridor», garante. 

Interrogado sobre a operação que tem estado em curso para acabar com o aglomerado de tendas onde vivem pessoas em situação de sem abrigo – maioritariamente imigrantes timorenses e senegaleses – no jardim situado junto à Igreja dos Anjos, em Arroios – e a que os ativistas chamam de «expulsam» e «limpeza da cidade» –, Tó diz que tudo não passa de uma parvoíce. «Quem não tem onde cair morto, o pouco que vier deve ser humildemente aceite. As pessoas sem casa só querem uma, seja ela onde for. Têm de ser gratas quando as estão a ajudar. Eu amo profundamente esse país», afirma enquanto os seus olhos se enchem de lágrimas. «Será que se eu lá for também me ajudam? Não entendo!», exalta. 

Enquanto a conversa se desenrola, dois jovens aproximam-se timidamente. «São eles que moram aqui», revela Tó. «Muito novos. São indianos e não falam bem nem português nem inglês. É muito triste vê-los nestas condições. A maior parte deles chega aqui com uma promessa de trabalho, mas depois – por causa da papelada –, não conseguem fazer nada. Estão quase todos metidos na droga e no álcool. Muitos já se injetam», conta. Num português arranhado, um dos jovens diz ter apenas 20 anos e que é «muito difícil» arranjar uma casa quando se vem sozinho. «Os meus documentos estão inválidos e não consigo trabalhar. Tenho de ir a Espanha tratar. Se tivesse vindo com família se calhar era mais fácil arranjar um lugar», acredita. 

Dando a volta ao jardim, Bianca encontra-se junto à sua tenda com o seu cão. Está bem vestida, maquilhada, mas quando abordada, mostra um bocadinho de desconforto. «Não quero que me grave, por favor. Mas posso contar um bocadinho da minha história», afirma. Há sensivelmente um mês que montou a tenda aqui na Praça. Tem 44 anos e é uma mulher transgénero. «Trabalhava à noite. Era prostituta… Até que o meu namorado me proibiu de fazê-lo. Acabámos por ter de vir para as ruas», admite. Segundo a mesma, este trabalha, mas o que recebe não dá para quase nada. «Eu não consigo trabalhar. Sou portuguesa, nasci aqui, tenho tudo em ordem. Mas as pessoas olham para mim de lado, não me aceitam», acrescenta.

A censura dos ativistas

A viagem continua. Estamos na Igreja dos Anjos. Há polícia por todo o lado e duas grandes tendas montadas no local para dar apoio através da Santa Casa da Misericórdia e da Agência para a Integração Migrações e Asilo (AIMA). O espaço nunca esteve tão cheio. Não sobra espaço nos «canteiros carecas» que circundam a Igreja. As pessoas que aqui estão são sobretudo imigrantes. Uns conversam de pé e ouvem música. Outros, sentados em cadeiras de praia ou café, matam o tempo. Há quem esteja a arrumar as suas coisas. «Já vou para casa. Vou embora», diz um dos cinco rapazes de Timor-Leste que está em Portugal há 2 anos e  já tem os seus poucos pertences reunidos. «Já temos casa», reforça outro no português possível, acrescentando que esta ajuda chegou há uns dias. «É em Santa Apolónia. Casa de Proteção Civil», revela com satisfação.

Enquanto falamos com um outro rapaz que se predispõe a dar declarações – mesmo com algumas limitações na comunicação –, a conversa é interrompida por uma pessoa que diz fazer parte de um coletivo de apoio a este tipo de casos. «Não vamos confundir as coisas!», intervém. No entanto, quando interrogado sobre o grupo do qual faz parte, a resposta dada é vaga: «Somos várias pessoas de vários grupos».  É-nos sugerido que não falemos com os imigrantes sem ajuda de um tradutor. «Como não falam bem nem inglês, nem francês ou português, as coisas podem ser mal entendidas e falseadas», defende, acrescentando que  aquilo que é passado «cria opiniões». Perguntamos se quer falar. Diz-nos que não tem essa vontade. «Se quer falar com alguém é melhor ter um intermediário. Vamos agora ter uma ‘reunião’ com as pessoas que aqui estão. Podemos perguntar quem quer falar e, depois, eles prestam as declarações», continua. «Pode voltar daqui a uma hora», sublinha. 

Aproximamo-nos do coletivo que, com um olhar desconfiado, interroga qual o meio de comunicação para o qual trabalhamos. «Ah!», solta uma das ativistas. «E qual a vossa posição sobre isto?».  «Conheço o seu jornal», solta ainda. As perguntas sobre a reportagem continuam e o ambiente torna-se um pouco hostil. «Pode voltar aqui a um bocado. Agora vamos começar a nossa conversa». 

‘Só quero sair desta tenda’

A reunião durou mais do que o esperado. São 20h e o grupo de ativistas já abandonou o local. Mas Bouba Molly – o tradutor senegalês –, está à nossa espera. Já está a anoitecer e as pessoas reúnem-se em grupos. Há quem esteja a dormir com a tenda aberta, quem ouça música de fones e quem esteja a comer qualquer coisa.  Deslocamo-nos até uma zona mais calma. Djibril Faye tem 26 anos e quer contar a sua história. Está em Portugal há dois meses. Segundo o jovem senegalês, o seu país é «muito difícil» e, por isso, nunca pensou que conseguisse sair de lá. «Também nunca pensei que as dificuldades me iriam empurrar para o mar», revela. «Enfrentei a morte para poder ajudar a minha família. O meu pai está doente. Não conseguia levantar-me todos os dias e ver que não podia fazer nada para ajudar», admite. Djibril Faye viajou do seu país de origem até Las Palmas. De lá, seguiu para Granada, mas as coisas não correram bem. Não conseguia encontrar emprego. Disseram-lhe que Portugal seria uma boa opção. «Disseram-me que os portugueses eram bastante humanitários», lembra. Para conseguir comprar a viagem para a Europa, o jovem trabalhou durante vários meses. Separou um pouco para deixar para a sua mulher e para o seu pai. «Paguei 300 mil francos para conseguir vir para a Europa. Foram 8 dias muito complicados. No final, já não havia comida. No mar tu não vês nada. Houve pessoas que começaram a delirar, uma até morreu», descreve. Além disso, de acordo com Djibril Faye, a água senegalesa e a espanhola são bastante diferentes. As águas espanholas são «muito salgadas» e, ao atingir a pele com os saltos do barco, criavam feridas nos braços. 

O jovem senegalês ainda não conseguiu casa. Apesar de ter uma tenda, as noites não são agradáveis. São tantas pessoas que, para que todos fiquem abrigados, uma tenda chega a levar 3 ou 4 pessoas, o que depois os impede de se levantarem a meio da noite para ir à casa de banho por não quererem incomodar ninguém. No entanto, agradece a toda a gente que lhe tem dado ajuda: «Estes movimentos são solidários e ajudam-nos. Agradeço a toda a gente que aqui vem e conversa connosco. A única coisa que eu quero é sair desta tenda», reforça.