Os artistas que o regime queria calar

Em Portugal, as músicas foram senhas. Durante o Estado Novo o país abriu-se ao rock, nascendo bandas icónicas como Os Sheiks e o Quarteto 1111. Fernando Tordo recorda o ambiente da época e como foi ser artista nessa altura.

A música tem poder. Independentemente do género. É companhia para quem se sente sozinho, é união para quem partilha do mesmo estilo musical, é inspiração para quem está apaixonado, amparo para quem está chateado. Foi e é um veículo de denúncia, de protesto e exaltação. Transporta-nos, conta-nos histórias e, por vezes, fala por nós. A música diz também muito sobre a história de cada país. “Como ser artista e não refletir a época?”, interrogava Nina Simone. Por isso, nela ficam marcadas vozes e rostos.

Em Portugal, as músicas foram senhas, sinais a que acabaram por se juntar cravos vermelhos. Como sabemos, antes da Revolução de Abril, as pessoas, em particular os artistas, viviam amordaçados por um açaime invisível. No entanto, a censura não era implacável e, felizmente, ainda hoje podemos conhecer e ouvir as canções que ao longo de 48 anos cantaram a liberdade mesmo que clandestinamente ou disfarçadamente. Dos artistas desta geração fizeram parte José Afonso, Vitorino, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Paulo de Carvalho, Adriano Correia de Oliveira, Luís Cília, Fernando Tordo, entre muitos outros cujo nome continua a ser lembrado. Mas o que se ouvia antes da Revolução? Como era o ambiente na altura? E a censura?

O plano da música alterou-se muito. De repente aparecem no país os efeitos da música americana e posteriormente – a partir de finais dos anos 50 –, da música inglesa, especialmente através dos The Shadows e de Cliff Richard. “Eles vieram trazer um interesse louco pelas guitarras e pela formação do grupo: bateria, guitarra e baixo, guitarra de acompanhamento e guitarra solo. Este grupo tem uma importância à escala mundial. Ainda são os meus ídolos”, diz ao i Fernando Tordo.

Com eles, milhões de pessoas em todo o mundo quiseram adquirir uma guitarra. “Algumas eram bastante caras! Eles usavam as célebres Fender. Só décadas depois – aos 60 anos –, consegui comprar a minha. É raríssimo tocar nela, mas tenho-a em homenagem aos anos todos que esperei. Naquela altura eram os filhos de famílias mais abastadas que as tinham. Eles compravam e a gente fazia fila à porta da sua casa para conseguir tocar dois acordes”, recorda o cantor. “Era uma coisa absolutamente única, ao ponto de me emocionar ainda hoje”, admite. Produzidas na América, à época estas guitarras ainda não existiam em Inglaterra. “A banda é que mandou vir dos EUA”, lembra Tordo.

Inspirados na banda inglesa surgiram “dezenas ou centenas” de grupos e concursos com os mesmos. O mais célebre, IÉ-IÉ, acontecia no Teatro Monumental através do empresário Vasco Morgado. Foi aí que começaram a selecionar-se os melhores grupos portugueses. “No final de 66 acabei por fazer parte do mais famoso: Os Sheiks. Entrei para o lugar do Carlos Mendes”, lembra o artista. O grupo era composto por Fernando Tordo, Fernando Chaby, Jorge Barreto e Paulo de Carvalho. Houve quem os considerasse os The Beatles portugueses. “Convém não esquecer que nos anos 62 e 63 aparecem os The Beatles que têm a mesma formação que os The Shadows”, aponta. Além de Os Sheiks, esta altura ficou marcada pelo sucesso de grupos como o Quarteto 1111, Os Ekos, Pop Five Music Incorporated, Chinchilas, os Jets, Titãs ou o Conjunto Mistério.

Consciência do regime

Ao contrário de outros rapazes da sua geração, Fernando Tordo começou cedo a sentir o peso da censura. “Era aluno do Colégio Moderno. Fui aluno de história do doutor Mário Soares tinha ele 32 anos. A perseguição sistemática da PIDE ali na rua do Malpique, atualmente Rua João Soares (pai dele). Viam-se aqueles carros escuros da PIDE e foram buscá-lo duas ou três vezes enquanto lá estive. Era uma coisa muito tensa e triste. Foi aí que comecei a reparar no peso do regime. Para um miúdo de 10 ou 12 anos as coisas passam um bocado ao lado, mas de qualquer modo o ambiente era tão negro que foi uma espécie de reconhecimento já muito avançado do que era Portugal e do que se passava aqui, muito especialmente no plano político”, continua. “Portanto, sendo eu ligado à música – evidentemente uma área muito suscetível e muito exposta à censura – já profissionalmente, era difícil gravar”. Ao longo da carreira, o cantor teve vários temas censurados, como O Café e o Canto no Deserto. “Até à ‘Tourada’, em 1973. A ‘Tourada’ não foi censurada!”, recorda satisfeito.

O compositor encontra uma explicação para a música “ter passado”: “Há uma leitura muito imediata e, lendo pela primeira vez, é muito difícil perceber, especialmente cantando… De qualquer modo, lendo, terá havido gente dentro da RTP que não gostava de touradas… Portanto, aquele texto numa primeira leitura encaixava perfeitamente nesse ‘não gosto’”, acredita. Ou seja, algumas pessoas consideraram-na uma sátira às touradas. “Era um exercício muito bem definido pelo Ary dos Santos. Só mais tarde é que as pessoas começaram a ler mais detalhadamente. Era uma sátira grande à sociedade portuguesa”, frisa Fernando Tordo, que levou a música ao Festival da Canção desse ano e que seguiu com ela para a Eurovisão.

No Festival da Canção, apesar de saber a intenção da cantiga, o cantor estava “divertidíssimo”. “Nós pensávamos que íamos mandar a cantiga e que, provavelmente, ia prejudicar as outras três que já tinham sido apuradas. Imagine o tamanho da surpresa quando no telejornal dizem a decisão do júri. É a surpresa de toda a minha vida. Tal como a de ter ganho o Festival”, afirma emocionado. Nessa altura já havia, no entanto, uma corrente muito forte de “desagrado profundo”. “A canção caiu como uma autêntica bomba e não se esqueça que estamos a falar de televisão única: mais de 6 milhões de espetadores”, lembra.

Dois géneros de cantores

Quanto ao panorama musical da época, o artista divide os artistas em dois setores: o mais saliente era o dos cantores que cantavam as cantigas de amor, enquanto o outro se mostrava “mais preocupado com a música, a sociedade, com os textos das canções que o próprio Ary dos Santos veio transformar completamente”. “Portanto, tínhamos os reis da rádio, dos programas de televisão e, por outro lado, uma linha muito menos fornecida, mas uma minoria que mexia muito com o setor mais informado da sociedade”, reforça. Esse grupo teve como figura central José Afonso e, depois, Adriano Correia de Oliveira. “Mais próximos do 25 de Abril surgiram os exilados: o José Mário Branco, o Vitorino… E os exilados em Portugal, dos quais eu faço parte, juntamente com o Paulo de Carvalho. Todos aqueles que manifestaram desde sempre esse interesse por uma transformação. Aqui dentro passava-se mal. A censura era direta”, revela.

Fernando Tordo lembra como Arnaldo Trindade, editor de música, gravava e vendia clandestinamente discos contra o regime. “Ele tinha uma firma que gravava os discos e os vendia nos frigoríficos. Era uma loja de eletrodomésticos. Vendia coleções de discos dentro de fogões! (risos) Ele arriscou, mas fez esta coisa absolutamente única! Ele tinha-os em armazéns. Era chamada de ‘música fresquinha’”, conta às gargalhadas.

Fernando Tordo sublinha ainda como ele e outros músicos se tornaram profissionais antes dos 16 anos. “A nossa dedicação à música era a sério. Não era para aparecer em capas de jornal. Nós estudávamos a sério. Esta minha geração viu tudo. E ainda estamos vivos para ver a miséria que se passa no mundo. Esta geração acaba por conhecer perfeitamente o país e, por isso, está muito desgostosa com tudo o que tem acontecido”, lamenta. “O 25 de Abril é uma libertação profunda. O 1 de Maio é uma coisa única! Hoje, em 2024, olhamos para o país, para a Assembleia e interrogamos como é que é possível. Custa muito. Causa muita apreensão e alguma revolta”, reconhece. 50 anos depois da revolução, considera que fazem falta os cantores de protesto.

Marginalizados e esquecidos

“A música já não tem o mesmo poder de antes. Com todo aquele mistério, força, marginalização… Portugal é um país que está cheio de músicos, gente nova, mas perguntamos como é que pode estar preparado – um país que trata a cultura da maneira que trata –, para albergar esta quantidade de músicos. Veja o estado em que estão os músicos hoje… As dificuldades com que vivem”. E chama a atenção para o facto de na última campanha os políticos não terem dito nada sobre a área. “Só dois candidatos citaram que esta tinha de ser apoiada. Quanto aos políticos principais, nem uma palavra. Isto é uma coisa para esquecer! É uma dor profunda. Dá a sensação que nada valeu a pena”, admite. “Vedetas e artistas são os políticos. Eles é que têm os holofotes quando entram nos palcos para dizerem as suas patacoadas políticas. Montam as coisas como se fossem verdadeiros espetáculos. Portanto, substituíram-se aos artistas”, defende. “A marginalização e o esquecimento são uma coisa desgraçada. Acham normal um tipo aos 76 anos ainda estar a cantar?”. E remata: “É preciso ouvir muita música! Escandalosamente e abusivamente”.

Artistas censurados e exilados

Grândola, Vila Morena, E Depois do Adeus, Pedra Filosofal, O que faz Falta, Liberdade, Trova do Vento Que Passa, Queixa das Almas Jovens Censuradas, O Povo Unido Jamais Será Vencido… Muitos são os “hinos” que marcaram esta época e que, ainda hoje, fazem vibrar as pessoas que consideram esta altura uma das mais importantes do ano. Foram muitas as formas que os artistas arranjaram para expressarem o que sentiam tanto antes como depois do regime salazarista. No entanto, durante o Estado Novo, muitos deles estiveram exilados e gravaram as suas obras fora do país. Segundo Vasco Martins, Presidente da Associação Memória Viva, Paris foi “um abrigo” para muitos exilados portugueses, inscrevendo-se assim “no mapa das lutas políticas contra a ditadura e a guerra colonial”, explicou à Rfi no mês passado. Outros preferiram instalar-se em Luxemburgo, na Suécia, nos Países Baixos, na Dinamarca, na Alemanha, na Bélgica e no Reino Unido. De acordo com os dados do historiador Miguel Cardina, na obra Refuser la Guerre Coloniale, de 2019, baseada nos arquivos do exército português, entre 1961 e 1974, houve cerca de 9 mil “desertores” , 20 mil “refractários” e 200 mil homens que nunca compareceram quando chamados pelos regimentos. Deste grande grupo fazem parte nomes como os de José Mário Branco, Vitorino, Luís Cília, Sérgio Godinho.