O 25 de Abril foi sem dúvida acolhido com genuíno gáudio popular. Logo que o pronunciamento militar se revelou vencedor, praças e ruas encheram-se de gente, num ambiente de alegria e festividade. Nos dias seguintes, este clima de alegria prolongou-se e culminou no l.º de Maio, Dia do Trabalhador. Logo aí, divisei um primeiro sinal de mau agoiro. Álvaro Cunhal, ou os seus sequazes, tentaram barrar a Mário Soares e à sua gente socialista a entrada no estádio. Não fora a coragem física de Soares, e os socialistas teriam ficado de fora da primeira comemoração do 25 de Abril. Por outras palavras, a revolução era pertença do Partido Comunista Português, que não admitia intrusos aos que não rezavam pelo rosário do marxismo-leninismo, nem visionavam a União Soviética como o Sol que alumiava o mundo.
O 25 de Abril fora pacífico; não assim a sua sequência. Seguiu-se-lhe o PREC – Processo Revolucionário em Curso. Em virtude do PREC, nunca oficialmente decretado, todos os desmandos foram autorizados. Existiam pequenos partidos de extrema-esquerda que esbravejavam por disputar a proeminência ao PCP, mas sem êxito. Ser simplesmente socialista já era considerado ‘fascista’. Tudo foi autorizado naquele país sem governo legítimo. Uma insignificante lavandaria, com meia dúzia de empregados, expulsaram o patrão e declararam-se em autogestão. A torto e a direito, nacionalizaram-se os bancos e as grandes empresas. No Alentejo, ocuparam-se a eito herdades e quintas e transformaram-nas em UCP’s (Unidades Coletivas de Produção) seguindo o modelo soviético. Alguém teve a genial ideia de criar comissões de bairro que vigiavam e distribuíam as casas desocupadas. Quem se ausentasse durante um fim de semana, podia, no regresso, encontrar a sua casa ocupada por novos inquilinos.
0 caos, naturalmente, estendeu-se as Universidades. As RGA’s (Reuniões Gerais de Alunos) decretaram o saneamento dos professores ‘fascistas’. Mais: para que a ‘democracia’ fosse plena, passaram a ser os alunos quem dava as notas, já que os professores eram suspeitos. Foi nesta altura que eu, com vinte e poucos anos, rompi definitivamente com o PREC e assim me tornei, aos olhos dos meus colegas, uma fascista.
Não era fácil romper com o status quo. Quem violasse a doutrina do PCP ou criticasse a estratégia do Partido era posto à margem. Nem os socialistas – bem pelo contrário – eram poupados. Tanto mais que o PCP escorava a maior parte do seu poder no MFA (Movimento das Forças Armadas), que dominava. Otelo Saraiva de Carvalho chefiava o COPCON, uma organização militar autónoma que medrara no seio de umas Forças Armadas em que toda a hierarquia e disciplina se tinham esboroado. Durante algum tempo, Otelo foi uma espécie de Rei de Lisboa.
Aparentemente, o Presidente da República, o general Costa Gomes, assistia impávido a todos os desmandos. Impotência? Talvez em parte. Mas o general tinha no bolso um trunfo imbatível: em troca da sua placidez, impôs a realização de eleições constituintes.
Este imperativo acabou por se realizar com a reunião de uma Assembleia Constituinte instaurada na sequência de eleições livres e universais. Os resultados foram avassaladores: o PS obteve 116 deputados, e o PCP apenas 30, muito menos até do que Sá Carneiro (Partido Popular Democrático) que obteve 81 deputados. Assim se viu a força do PCP… Um resultado contrastante com a influência e o poder que eram essencialmente uma resultante das suas ligações militares. As eleições mostraram que o rei ia nu.
Mas não passou a comportar-se como um derrotado. A bagunça, talvez mais moderada, continuou. Até que um grupo de militares já fartos da balbúrdia, entre os quais se destacam o ideólogo Melo Antunes, Ramalho Eanes (futuro Presidente da República) e Jaime Neves com a sua companhia de comandos, urdiram o 25 de Novembro de 1975. Foi um sucesso. No dia seguinte o COPCON foi dissolvido e os militares começaram a regressar aos quartéis. Não me lembro a partir de quando se começaram a barbear nem a cortar as cabeleiras.
Num ambiente já muito mais acalmado, Ramalho Eanes foi eleito Presidente da República (27-6-76), depois de Mário Soares ter substituído como primeiro-ministro o estouvado Vasco Gonçalves.
Estavam criadas as condições para eleger uma Assembleia Legislativa, o que aconteceu em 3-6-76. O COPCON foi extinto logo a seguir ao golpe de 25 e Novembro de 1975. Estava, finalmente, terminada uma revolução comunista que quase ninguém queria. Ao cabo de tanta luta, Portugal normalizava-se. Graças ao 25 de Novembro, somos hoje um país capitalista, livre e democrático, que o PCP, hoje em dia com os seus dois
ou três deputados, não estorva.