A morte de Catarina Eufémia. Assassinada pelas balas do sol na culatra da noite

Jorge Costa Santos, a pedido do Nascer do SOL, analisa as circunstâncias em que ocorreu a morte de Catarina Eufémia, cruzando a autópsia da época com a peritagem à arma do assassino, o tenente João Carrajola. E assinala as falhas e as incongruências dos relatórios periciais.

O título, parcialmente roubado a um poema de José Carlos Ary dos Santos, poderá parecer estranho para encabeçar um texto que mais não é do que um modesto exercício interpretativo das circunstâncias em que terá ocorrido a morte de Catarina Eufémia, à luz de documentos manuscritos da época. Catarina Eufémia foi vítima de homicídio, cuja tipificação jurídica depende de uma multiplicidade de provas, nomeadamente testemunhais e periciais. É apenas sobre estas últimas que incide a nossa análise médico-legal, procurando descortinar, entre outros aspetos, se, e em que medida, a conduta de matar outra pessoa, que caracteriza o homicídio, se afigura, no caso vertente, de natureza voluntária ou involuntária, ou, dito de outro modo, se existem elementos periciais que permitam destrinçar se a morte de Catarina Eufémia resultou de uma conduta consciente e propositada do agressor, portanto voluntária, ou se essa morte resultou da imperícia, inconsideração, negligência, falta de destreza ou falta de observância de regras a que este se encontraria legalmente obrigado, mais suscetível de ser entendida como involuntária.

A ideia de justiça está estreitamente associada à busca da verdade material dos factos, que pressupõe a investigação e esclarecimento de uma série de questões não muito diversas das que se colocam ao jornalista no exercício da sua missão de informar: quem, o quê, onde, como, quando e porquê. A resposta judicial a estas questões poderá fazer apelo a conhecimentos especializados, científicos ou outros, que escapam à formação e experiência dos magistrados. É este o contexto em que se inscreve a intervenção pericial.

Alertadas as autoridades judiciárias para a ocorrência de uma morte violenta, então como agora, é desencadeado um inquérito, no âmbito do qual é ordenada, nos termos da lei, a realização de uma autópsia médico-legal, com o objetivo de apurar a causa e as circunstâncias da morte. Nesta perspetiva, vejamos o que de mais relevante se pode extrair de documentos manuscritos da época.

No dia da morte de Catarina Eufémia, 19 de maio de 1954, o presidente da Comissão de Administração do Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Beja comunica ao Ajudante do Procurador da República da comarca de Beja que «hoje, cerca das 10 horas e meia, deu entrada no Banco deste Hospital, onde veio a falecer momentos depois, uma mulher vinda de Baleizão, cuja identidade se desconhece por enquanto, a qual foi vítima de um acidente» (sic). Assinale-se a informação subscrita por um médico e responsável hospitalar, que aponta, desde logo e sem qualquer sustentação, para acidente. A esta comunicação, sucede-se, ainda nesse dia, o então denominado ‘Auto de corpo de delito directo’, no qual é referida a participação apresentada pelo tenente Carrajola, comandante de Secção da Guarda Nacional Republicana, em Beja, que alega «haver ferido involuntária e mortalmente um indivíduo da classe civil, no sítio de Baleizão, concelho de Beja, durante a alteração de ordem pública hoje ali ocorrida» (sic).

No dia imediato, é lavrada, no hospital, uma nova peça constitutiva do processo judicial, o auto de autópsia, que marca o início da intervenção pericial. Aí se encontram plasmadas a identificação da vítima, «que se presume ter sido atingida com tiros» (sic), a identificação de dois médicos, «devidamente requisitados para servirem de peritos na autópsia» (sic) e de duas testemunhas presenciais, ambas enfermeiros ajudantes no hospital, que, embora assim designados, terão exercido as funções de auxiliares na autópsia. Estranhamente, o auto dá conta de que o reconhecimento do cadáver é feito pelo juiz, embora também aí conste a presença do pai e do cunhado da vítima, mais prováveis autores desse reconhecimento, que também assinam o documento. Ainda relativamente a este auto, a formulação utilizada pelo juiz que presidiu ao ato – médicos para servirem de peritos –, merece, a nosso ver, um comentário. Segundo se colhe dos dicionários correntes, perito é, na aceção geral, a pessoa versada, hábil, prática em alguma ciência ou arte, ou quem é muito experimentado ou possui especial competência em determinada área do conhecimento, enquanto, na sua aceção jurídica, perito é a pessoa nomeada por um magistrado para proceder a um exame médico. Esta última aceção repousa, erroneamente, no pressuposto de que basta ser médico para exercer funções periciais no âmbito da medicina ou, dito mais prosaicamente, que o hábito faz o monge. Esta adulteração semântica explica, em larga medida, as insuficiências do relatório da autópsia e, consequentemente, o limitado alcance do contributo pericial para o apuramento da verdade. Atente-se que, à época, as autópsias médico-legais eram realizadas por quaisquer dois médicos nomeados pela autoridade competente, situação que perduraria pelo menos até 1987, ano em que ocorreu a primeira grande reforma dos serviços médico-legais no nosso país. É certo que, também anteriormente, os estudantes de medicina recebiam, ao longo do curso, algum tipo de informação de natureza médico-legal e assistiam a umas quantas – duas ou três – autópsias, que, de modo algum, os habilitavam a exercer funções periciais desta natureza e complexidade. Da mesma forma que, concluído o curso, um médico não fica, só por isso, capaz de praticar cirurgias, que fazem apelo a uma formação complementar especializada.

À luz do que atrás se disse, o relatório da autópsia do cadáver de Catarina Eufémia não satisfaz os requisitos exigíveis a um documento desta natureza. A autópsia é um procedimento médico especializado que consiste em examinar um cadáver, o que implica uma observação sistemática, atenta e minuciosa, uma exploração das anomalias e lesões encontradas, um registo pormenorizado das observações efetuadas e uma discussão de todos os elementos pertinentes, por forma a explicar e dar a compreender os factos apurados. Ora, o relatório em questão só formalmente corresponde ao que dele seria de esperar. Não contém a informação disponibilizada aos peritos pela autoridade requisitante, embora seja de admitir que estes tivessem conhecimento de que a vítima mortal teria sido baleada. O relatório começa com a identificação desta (nome, idade, estado civil, ocupação, filiação e morada), à qual se segue a descrição do vestuário, que, em bom rigor, faz parte do exame do denominado “hábito externo”, ou seja, da aparência externa do cadáver. Aí se encontram referidas as várias peças do vestuário que envergava, as quais se encontravam “ensopadas em sangue e coágulos, nas regiões das costas, axila e linha axilar direitas” (sic). Mais se diz que “o vestido, combinação, colete e camisola apresentavam, nas costas, quatro orifícios irregularmente circulares” (sic), bem assim como um orifício arredondado na região da linha axilar e três outros orifícios circulares a nível da manga direita, um na região deltoideia e dois na face posterior do braço. Conta-se, assim, no vestuário, um total de oito orifícios, quatro nas costas, sem outra indicação, e, do lado direito, um no que os peritos designam por “linha axilar”, um no ombro e dois no braço. É notória a imprecisão desta descrição, quer sob o ponto de vista terminológico (p. ex., orifícios circulares e orifício arredondado, sem que se perceba a distinção), quer da referenciação anatómica utilizada.

Na rubrica do “hábito externo”, após remoção das peças do vestuário, são referidos os sinais mais comuns de morte (p. ex., palidez da pele, rigidez e livores), e, algo surpreendentemente, dado o reduzido tempo decorrido entre a morte e a autópsia (pouco mais de 24 horas), “sinais de putrefação”, sem outra especificação. Atente-se que se tratava do cadáver de uma mulher jovem e descrita como de compleição franzina.

A fim de evitar longas e fastidiosas transcrições do relatório, que pouco ou nada ajudam à compreensão do essencial, optámos por privilegiar os aspetos tidos por mais relevantes para este efeito, procurando interpretar aquilo que foi registado pelos peritos. Assim, no revestimento cutâneo da região dorsal, encontram-se descritos três orifícios regularmente circulares, com um diâmetro de cerca de 5 milímetros, cada um deles rodeado por um anel, de cor negra, com cerca de 5 milímetros “de largura” (sic), que “desaparecem com a lavagem” (sic). Tratando-se de anéis envolvendo orifícios não faz obviamente sentido falar de largura. A descrição destes orifícios é grosseira, levando, todavia, a admitir como mais provável, tratar-se de orlas de contusão, ou seja, de zonas da pele contundidas e de escoriação da epiderme, que se situam em torno dos orifícios de entrada dos projéteis, com dimensões compatíveis com disparos de arma de fogo com o calibre de nove milímetros. O mecanismo de formação está relacionado com a resistência que a pele e os tecidos de suporte subjacentes oferecem ao embate do projétil. A coloração negra poderá corresponder à zona onde ocorre o depósito da nuvem de resíduos transportados pelo projétil, designada por orla de enxugo e de escoriação ou anel de limpeza. A referência a estes anéis, no caso vertente, suscita, todavia, alguma reserva, pois os projéteis terão atravessado antes várias peças de vestuário, que reteriam tais resíduos. A descrição destes orifícios, circulares e concêntricos, sugere tratar-se de orifícios de entrada provocados por projéteis disparados perpendicularmente ao corpo, que, à luz da física elementar, seguiriam um trajeto linear, de trás para diante. Assim, seria de esperar uma de duas situações: a existência de orifícios de saída correspondentes na face anterior do tórax ou a retenção dos projéteis no interior do corpo. Ora, inexplicavelmente, nada disto se encontra registado, seja a descrição de orifícios de saída, seja a referência a projéteis retidos no interior do corpo. É ainda referido um outro orifício na região dorsal, de forma oval, com 1,5 centímetros de eixo maior, que se prolonga para cima, sob a forma de sulco (?), na direção da omoplata direita, com cerca de 15 centímetros de comprimento e um de largura; um orifício, irregularmente circular, na região deltoideia, com cerca de 1,5 centímetros de diâmetro; um orifício circular na região da linha axilar direita (anterior, média, posterior?), com cerca de 1,5 centímetros de diâmetro, e duas feridas, irregularmente circulares, na face posterior do braço direito, acima do olecrânio. Encontramos, assim, oito lesões cutâneas (orifícios e feridas), relacionáveis com os orifícios descritos nas peças de vestuário, sem que, todavia, seja possível estabelecer, com razoável segurança, o número de disparos. Se os quatro orifícios encontrados no dorso, ou seja, na face posterior do hemitórax esquerdo, parecem corresponder a outros tantos disparos, não é possível excluir que as restantes lesões possam ter sido produzidas por menos disparos ou, dito de outro modo, que um mesmo disparo possa ter provocado lesões a nível da axila, ombro e braço direitos, dependendo da posição da vítima quando foi atingida. Acontece, porém, que a concordância do número dos orifícios descritos nas peças de vestuário com o das lesões corporais, suscita, também ela, sérias reservas, uma vez que situa quatro orifícios nas costas, sem qualquer alusão a orifícios no peito, como seria de esperar, pelas razões atrás aduzidas.

Assinale-se que não existe qualquer referência à utilização de sondas ou estiletes, que pudessem ter contribuído para precisar razoavelmente o trajeto dos projéteis no interior do corpo. Já a trajetória, ou seja, a direção seguida por estes desde o cano da arma até às estruturas atingidas, pode ser inferida, ainda que com reservas, como tendo sido de baixo para cima e da esquerda para a direita. Isto concorda com o tipo de arma utilizada e identificada nos autos, uma pistola-metralhadora “Sten MKII” ou “Sten 9 mm”, cuja posição de disparo pode ocorrer a nível da cintura de quem a empunha, portanto abaixo do nível das lesões encontradas na vítima, que estaria de pé e de costas para o agressor quando foi baleada. Como também concorda, no essencial, com o relato de um dos peritos médicos que efetuou a autópsia, quando de uma entrevista por ele dada no livro Meus Senhores, Minhas Senhoras do antropólogo Paulo Lima, mais de cinquenta anos depois do sucedido. Assinale-se, todavia, que, segundo os peritos de balística que examinaram a arma no âmbito do inquérito, o empunhamento correto da arma é com esta “bem metida à cara” (sic). Bem ou mal empunhada, a arma não estaria seguramente ao nível da face do atirador, como sugerem a trajetória dos projéteis e a localização topográfica das lesões.

Dito isto, sintetizemos as lesões encontradas no “hábito interno”, ou seja, no interior do cadáver aberto cirurgicamente, que começou pela cavidade torácica, onde era suposto encontrarem-se as lesões mais importantes. Daqui se extrai a presença de fraturas ditas esquirolosas do 3º e 7º arcos costais direitos e do 8º arco costal esquerdo, lesões extensas de ambos os pulmões e dos grandes vasos sanguíneos, incluindo a aorta torácica, fratura cominutiva do colo do úmero direito, a existência de grande volume de sangue na cavidade (1,8 litros) e a anemia generalizada dos restantes órgãos, cuja observação é descrita sumariamente. Estas graves lesões traumáticas são de natureza catastrófica e passíveis de provocar a morte num escasso lapso de tempo (minutos), pelo que resulta muito duvidoso que a vítima tenha chegado ainda com vida ao hospital, onde, segundo a informação enviada ao Procurador, teria vindo a falecer momentos depois.

Em sede de conclusões, os peritos médicos atribuem a causa da morte a abundante hemorragia sanguínea, seguida do colapso por esta provocado, dizendo também que “todas as lesões traumáticas foram produzidas por três projécteis (balas) actuando da esquerda para a direita, de baixo para cima e ligeiramente de trás para a frente e com o cano da arma encostado ao corpo da vítima” (sic). A insuficiência descritiva, não permite, em rigor, classificar os tiros como tendo sido à queima-roupa, embora também não se possa excluir tal eventualidade. Em todo o caso, há elementos que apontam para disparos a curta distância (menos de 30 cm).

De tudo isto, resulta evidente a falta de qualidade do relatório, cujas causas já foram acima afloradas: escassa preparação diferenciada dos peritos médicos, imprecisão terminológica, ignorância da semiologia médico-legal básica, nomeadamente no que se refere à caracterização dos orifícios produzidos pelos projéteis de arma de fogo, falta de rigor descritivo, atribuição da causa de morte à hemorragia provocada por três balas, quando, à luz do relatado, terão sido, pelo menos, quatro os disparos que contribuíram para o desfecho fatal. A perícia balística realizada por militares, pouco ou nada adianta, limitando-se a referir o bom funcionamento da arma e as possibilidades de tiro em modo de repetição (tiro-a-tiro) ou de rajada. Tendo em conta as lesões cutâneas descritas e a sua localização, afigura-se mais provável que a arma se encontrasse na posição de rajada e que a morte tenha resultado de uma ação involuntária. Importa, todavia, realçar que, à época, a atividade médico-legal dependia da nomeação de peritos, que exerciam essa atividade ocasionalmente, em circunstâncias muito precárias e com escassos meios ao seu alcance (não dispunham, p. ex., de apoio fotográfico ou de Rx, que poderiam ter feito a diferença).

Chegados aqui, estamos em crer que o relatório pericial pouco ou nada terá contribuído para a realização da Justiça, limitando-se a apor uma chancela pseudocientífica a algo que, no essencial, já era conhecido pelas autoridades. Lamentando a falta de melhores argumentos técnico-científicos, pouco mais nos resta que recordar o verso lapidar de Ary dos Santos, extraído do seu Retrato de Catarina Eufémia, que usámos no título: “Assassinada pelas balas do sol na culatra da noite.”

Ex-Professor Catedrático de Medicina Legal e Ciências Forenses na Faculdade de Medicina
da Universidade de Lisboa

Ex-Vogal do Conselho Diretivo do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses