Fiat frigus

O frigorífico de Dickie é praticamente igual ao que conheci durante toda a minha vida em Casa dos meus pais.

Não, o título da coluna de hoje não se refere a nenhum modelo de carro da conhecida marca italiana; é em latim e quer dizer ‘faça-se frio’. Vem isto a propósito da série Ripley, atualmente em exibição na Netflix. Escrita e realizada por Steven Zaillian – argumentista de filmes como A Lista de Schindler ou Gangues de Nova Iorque -, é a melhor adaptação audiovisual alguma vez feita do romance policial de Patricia Highsmith O Talentoso Ripley (1955), que teve quatro sequelas. Poder-se-á até dizer que raramente um livro foi tão bem transposto para a tela ou o ecrã, apesar de uma ou de outra divergência, como, por exemplo, a ação da série decorrer em Atrani, em 1961, e não em Mongibello, em 1955. A própria duração, de aproximadamente oito horas, distribuídas por oito episódios, deverá aproximar-se do tempo médio de leitura do romance.

No terceiro episódio, Dickie compra um frigorífico – eletrodoméstico que, na Europa começava a ser comum. Quem não aprecia a iniciativa é Tom, que, embora americano, diz preferir enforcar-se a comprar um. Certamente receava que, doravante, Margue permanecesse mais tempo na casa do namorado. Além disso, a aquisição significava que Dickie estava mesmo decidido a ficar na Europa, e não propriamente em Roma ou em Paris com ele. Questões de enredo e interpretações à parte, o frigorífico de Dickie é praticamente igual ao que conheci durante toda a minha vida em casa dos meus pais. O meu pai era ainda solteiro quando adquiriu o aparelho, o que, pelos meus cálculos, terá sido por volta de 1960. A verdade é que ainda hoje lá está, incansável e irrepreensível, a cumprir as suas funções, sem nunca ter necessitado de qualquer reparação. A minha mãe, satisfeita com tão leal servidor, não quer mais nenhum. Na verdade, possui outro, mas há muito que não o utiliza (talvez por não ter sido o meu falecido pai a comprá-lo).

O frigorífico doméstico, dito de compressão, funciona com base na evaporação e condensação de um fluido refrigerante num circuito fechado. Durante a evaporação, o fluido absorve calor do interior do frigorífico, arrefecendo-o. De seguida, o gás resultante é comprimido para liquefazer, gerando calor, que é libertado para o exterior. Este processo repete-se ciclicamente. O passo da evaporação do fluido e o subsequente arrefecimento do frigorífico correspondem a um fenómeno que todos nós já experienciámos: não sentimos uma sensação de frescura quando o álcool ou a transpiração se evaporam sobre a nossa pele? É também por essa razão que a água se mantém fresca se for mantida numa bilha de barro poroso.

Em meados do século XVIII já tinha sido possível observar a formação de gelo nas paredes de contentores de éter etílico sob vácuo. No entanto, a refrigeração artificial só se desenvolveu a partir do século seguinte. Foi para isso crucial que Michael Faraday, em 1820, comprimisse amoníaco gasoso, transformando-o em líquido. O genial físico e químico britânico também observou que ao deixá-lo passar novamente a gás ocorria arrefecimento. Em 1834, em Inglaterra, o norte-americano Jacob Perkins construiu o primeiro sistema funcional de refrigeração por compressão de vapor, ao qual se seguiriam outros dispositivos baseados no mesmo princípio, utilizando amoníaco, éter ou álcool. Contudo, o primeiro sistema a revelar utilidade prática só foi patenteado em 1856. O seu autor foi James Harrison, um escocês emigrado na Austrália que, dois anos antes, já tinha construído a primeira máquina comercial de fazer gelo.

É com imaginação, mas também algum fundamento, que, no conto Civilização (1892), embrião de A Cidade e as Serras, Eça de Queirós descreve a casa de Paris de Jacinto: «As travessas subiam da cozinha e da copa por dois ascensores, um para as iguarias quentes […]; outro […] para as iguarias frias, forrado de zinco, amónia e sal». Quanto aos primeiros frigoríficos elétricos para uso doméstico, surgiram somente em 1913, nos EUA, tendo a sua disseminação começado em 1927, coincidindo com a utilização do aparentemente inofensivo Freon como fluido de arrefecimento. Trata-se de uma mistura gasosa de hidrocarbonetos clorados e fluorados, os chamados CFCs, os quais se viria a descobrir, na década de 1970, que destroem a camada de ozono. Na sequência do Protocolo de Montreal, a sua utilização tem vindo a diminuir.

Deixei uma pequena revelação para o fim: o frigorífico da casa dos meus pais é da mesma marca italiana de carros que mencionei no início desta coluna.

Químico