Transexualidade. Recursos e procedimentos médicos para mudar de sexo

Isabel recorreu à cirurgia de mudança de sexo com 34 anos. Hoje, com 46, o balanço que faz é positivo, apesar de ter gasto quase 28 mil euros em todo o seu processo. Mas afinal quais os critérios que as pessoas têm de cumprir para poderem fazer a cirurgia? Como é que estas se realizam?…

Se antes era quase um tabu, hoje ouve-se falar cada vez mais sobre o assunto e ainda bem. Apesar de diferentes, somos todos feitos do mesmo e toda a gente merece sentir-se bem, não só no seu próprio corpo, como na sociedade onde se insere. Sabemos que biologicamente nascemos com um género: ou masculino ou feminino. No entanto, nem toda a gente se identifica com o género atribuído à nascença. A palavra trans engloba precisamente essa variedade de vivências de género. Identidades trans tanto podem ser binárias (homem/mulher), como não-binárias (termo guarda-chuva para identidades de género que não são estritamente masculinas ou femininas), e pessoas trans podem escolher transicionar (ou não) socialmente, legalmente e/ou medicamente sendo que a não realização destes processos não invalida a identidade da pessoa, tal como explica o Guia sobre Saúde e Leis Trans em Portugal da rede ex aequo.

Mas desde quando é que estas cirurgias se realizam? Em Portugal, quais são os critérios que se devem ter em conta antes de se realizar uma cirurgia? O que as pessoas devem fazer para se prepararem para ela? Como se realizam as mesmas? Há alguma mais complexa que a outra?

Quase 400 cirurgias desde 2017

Recorde-se que as cirurgias de mudança de sexo estão previstas na lei portuguesa desde a década de 1980. No entanto, só em 1995 é que a Ordem dos Médicos deixou de punir os profissionais que as realizassem. Em fevereiro deste ano, o Público noticiava que desde 2017 e até 2023, pelo menos 397 pessoas fizeram cirurgia para mudar de sexo nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), com a esmagadora maioria das intervenções de redesignação sexual a terem sido realizadas na Unidade de Reconstrução Génito-Urinária e Sexual (URGUS) do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC). Os dados avançados pela mesma publicação revelam que, das quase 400 pessoas que fizeram a cirurgia para mudar de sexo, 18 fizeram-na no Santo António. O Hospital de São José também tem esta resposta, mas até dezembro do ano passado não tinha feito qualquer cirurgia deste tipo, estando a preparar-se. Relativamente à evolução do número de operações, em 2023 registou-se uma ligeira descida face ao ano anterior: no ano passado foram 66 pacientes submetidos à mudança de sexo, menos 12 do que em 2022. A maior quebra registou-se em 2020, com apenas 13 cirurgias deste tipo realizadas, devido aos impactos da pandemia da Covid-19 na saúde. Depois, registou-se um aumento da procura, com 54 casos em 2021 e 78 em 2022.

João Décio Ferreira – um dos nomes que se destaca neste âmbito e que, em 2011, insatisfeito com as condições salariais no SNS, passa a operar no privado –, não concorda com a explicação dada pela rede ex aequo. Para o especialista, transexual é uma pessoa que “nasceu com um corpo de um sexo diferente do ‘sexo do seu cérebro’”. “À manifestação social do sexo do nosso cérebro chamamos socialmente Género”, elucida. “Essa discrepância entre o ‘sexo do corpo’ e o ‘sexo do Cérebro’ provoca sempre sofrimento. Pessoas que se dizem transexuais mas que não estão interessadas nas hormonas ou nas cirurgias certamente não foram diagnosticadas de transexuais. Podem ter alguma patologia psíquica”, defende.

Anos de sofrimento

Isabel, atualmente com 46 anos, sempre se sentiu mulher. Só aos cinco anos de idade é que percebeu que não o era. “Na minha cabeça não fazia sentido e nenhum argumento me convencia, até que me mostraram a diferença dos genitais das meninas e dos meninos. A partir desse momento, passei a odiar a minha parte íntima e, com sete anos, tentei minha 1.ª mutilação genital”, conta ao i.

“Tenho a sorte de ter nascido numa família amorosa e disposta a entender a situação. Levaram-me a muitos psicólogos e, tempos depois, já num psiquiatra, diagnosticaram-me com ‘Disforia de Género’”. A Disforia de Género é o desconforto ou sofrimento relacionado a uma incongruência entre a identidade de género de um indivíduo e o sexo atribuído à nascença. “A família sempre me teve como uma menina, embora durante toda a minha adolescência me ter assumido socialmente como homossexual, porque os gays são socialmente mais aceites na sociedade, principalmente no mercado de trabalho”, explica, acrescentando que, nessa altura, “não era possível iniciar a transição hormonal na pré-adolescência”. “Isso teria me ajudado imenso, teria evitado passar pela puberdade, teria evitado características do sexo biológico… Enfim, teria tido a oportunidade de ser quem sempre fui muito mais cedo”, reflete.

O processo até à cirurgia

Para Isabel, a decisão de fazer a cirurgia surgiu “muito cedo”. Mas só com 16 anos é que descobriu que era possível. “Antes disso, não tinha essa informação e já havia desistido até de viver”, revela. “Infelizmente só tive possibilidade de a fazer tardiamente, aos 34 anos, uma vez que optei por escolher a melhor técnica cirúrgica e o melhor médico… Tudo isso no privado, pois não tinha confiança no SNS devido à técnica que eles usam. O resultado poderia não ser satisfatório”, acredita.

Segundo a mesma, dois anos antes da cirurgia dá-se início à Terapia Hormonal. Mas Isabel já o tinha iniciado aos 18 anos. Ou seja, “já era uma mulher na aparência”. “Por isso, o sexologista apenas fez uns ajustes na modulação hormonal”, explica. “Além desta, também exigem dois anos de consultas com a psicóloga e, no final, um parecer psiquiátrico. Tudo isso para receber ou não o diagnóstico de Transexualidade/Disforia de Género… Sem esse diagnóstico não há cirurgia, pois há casos que não é Disforia de Género e, por isso, é tratado de outra forma”, continua. No caso de Isabel, esta teve a autorização para a cirurgia em menos de um ano, já que já estava em transição hormonal e já havia sido diagnosticada ainda criança. “Mas eu não tinha esse diagnóstico em documento, por isso tive de continuar a ir à psicóloga uma vez por semana durante quase um ano. Achei desnecessário pela minha história, mas a legislação exige esse tempo de acompanhamento psicólogo”, afirma. Já com o diagnóstico marcou a cirurgia com o médico João Décio Ferreira, que a operou no Hospital de Jesus, hospital privado católico em Lisboa. Sete dias após a operação deixou o hospital e lá retornou a cada semana para acompanhamento. “Fiquei muito satisfeita com todo o acompanhamento, o carinho e respeito de todos os profissionais de saúde. O meu médico foi praticamente um pai para mim”, admite.

Para os casos que não queiram realizar a operação pelo privado, para iniciar o processo de afirmação de género, a pessoa trans precisa de ser referenciada no SNS. Para isso, deve contactar o médico de família, um psicólogo ou psiquiatra, que a orientará nesse diagnóstico e nos passos seguintes. Além disso, as associações que trabalham com a comunidade LGBTQIA+ também podem ajudar. Depois deste primeiro passo, tal como conta Isabel, está previsto um forte acompanhamento na área da sexologia clínica, com um psiquiatra ou psicólogo. A pessoa é depois encaminhada para terapia hormonal, acompanhada por um endocrinologista. A última fase será a da cirurgia.

Em Portugal, há critérios rigorosos que se devem cumprir para que a cirurgia seja permitida: ser maior de idade, a avaliação de dois centros de sexologia, a avaliação da endocrinologia a atestar que não há contraindicação, pelo menos um ano de terapia hormonal, um índice de massa corporal abaixo dos 30kg/m2 e a cessação ou redução do tabaco.

Como se faz uma vagina?

De acordo com João Décio Ferreira, há várias técnicas por este mundo fora. “Como não me agradavam as que tomei conhecimento que se faziam, fiz o que sempre faço nestas situações: crio uma técnica cirúrgica nova específica para a situação. Quando estava ainda no Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital de Santa Maria a operar e fazia algum ato técnico novo, costumava dizer aos internos que me estavam a ajudar: ‘Aprendam esta que eu aprendi-a agora mesmo’”, conta o especialista. Na técnica utilizada pelo médico – o chamado método de jejuno –, é retirada uma porção do intestino delgado (entre 15 a 20 centímetros) e usada no revestimento do canal vaginal. Em média, uma vagina terá entre 12 a 14 centímetros de profundidade, com três a quatro de largura. Depois, a glande serve para a criação do clitóris, o prepúcio para os pequenos lábios e o escroto para os grandes lábios. “De facto para ser feito com segurança máxima tem de ser feita em vários tempos operatórios porque é desejável que se faça todas as transformações cirúrgicas com todas as seguranças de modo a que se tenha o mínimo possível de complicações e que as que surgirem tenham maior facilidade de ser resolvidas”, afirma o especialista. A cirurgia pode, por isso, levar várias horas. Esta também inclui a falectomia e a orquiectomia: a retirada do pénis e dos testículos.

Para Isabel, foram quase 10 horas de cirurgia. “Acordei com uma dor insuportável numa das pernas e uma pressão na região operada. O pós operatório é complicado, não por causa da dor, mas por ter ficado seis dias na cama sem me poder levantar, sem comer nada e sem beber nada também. Quando chegou ao sexto dia fui levada de volta ao bloco cirúrgico, outra anestesia geral para retirada de um molde que estava no meu canal vaginal com enxerto de mucosa retirada do jejuno. No dia seguinte, ou seja, no sétimo dia tive alta”, conta.

Demorou muito tempo até se sentir 100% recuperada. O médico autoriza a relação sexual depois de 4 meses, mas antes disso tinha que fazer todos os dias dilatação vaginal introduzindo dilatadores que eram como se fossem ‘dildos’: um de 14cm, outro de 17cm e outro de 20cm. Essa foi a pior parte do pós operatório, uma dor que me levava ao inferno”, admite. Quatro meses depois da cirurgia, sentiu-se segura para ter a sua primeira relação sexual e, felizmente, embora com sangramento, não houve muita dor. “Consegui ter um orgasmo na 4.ª relação. Com um ano de operação é que me senti totalmente recuperada, pois já não havia nenhum inchaço e parou de sair a grande quantidade de água que me obrigava a usar pensos”, descreve ainda.

Como se faz um pénis?_

Segundo João Décio Ferreira que já operou quase 400 pessoas ao longo da sua carreira – o médico já tem 80 anos –, para a realização das faloplastias, há que tirar toda a mucosa vaginal, o que se faz ao mesmo tempo da histerectomia (retirada do útero), “para que se obtenha o encerramento total da local vaginal”. “Quando está cicatrizada e encerrada toda a vagina, numa 2.ª cirurgia é feita a faloplastia, utilizando a técnica que entendermos mais indicada para o caso. Eu uso para esse fim a técnica do retalho tubular abdominal, que implica vários tempos cirúrgicos, mas que não deixa sequelas muito visíveis”, revela. O especialista evita técnicas que criam “sequelas esteticamente e/ou funcionalmente limitativas, como é a técnica do retalho livre do antebraço”. “Só por curiosidade: fiz com a minha colega, a Dra Gisela Sardinha, a 1.ª faloplastia em Portugal com retalho livre da face externa do braço, técnica que tinha visto fazer na Eslovénia em Liubliana. O braço é entre o cotovelo e o ombro, o antebraço é do punho ao cotovelo”, acrescenta.

Relativamente à sensibilidade dos órgãos: a sensibilidade do pénis, da maneira como João Décio Ferreira faz a faloplastia, é dada a partir do clitóris que “fica na base do pénis, como se fosse um pequeno sinal”. “De facto a glande do clitóris fica a ‘aparecer’ na base do pénis com toda a sua sensibilidade, depois a partir daí vai havendo uma reenervação natural que vai progredindo podendo ao fim de alguns meses fazer com que esse pénis adquira sensibilidade em quase toda a extensão. Como toda essa sensibilidade tem origem nos nervos do clitóris, essa sensibilidade está referida ao clitóris (de facto o clitóris anatomicamente e embriologicamente é um pequeno pénis)”, descreve.

Interrogado se há uma cirurgia mais complicada do que a outra, o médico frisa que “não há cirurgias mais difíceis ou menos difíceis”. “Na verdade, há cirurgias maiores e menores em todo o processo de mudança de sexo e, quem faz essas cirurgias, deve ter conhecimentos técnicos para as fazer com o máximo de segurança”, sublinha. As complicações associadas a este tipo de cirurgia são as complicações que podem surgir em qualquer cirurgia, mas no caso de Feminino para Masculino o mais comum é “haver estenoses da neouretra (apertos da uretra construída) que se resolvem cirurgicamente com enxertos de pele ou de mucosa oral”.

Custos das cirurgias

Segundo o especialista, os custos da cirurgia podem ser mais comportáveis quando o candidato/a tem algum sistema de saúde que o comparticipa, como o ADSE por exemplo. “Normalmente as Companhias de Seguro não comparticipam. De qualquer forma, o conjunto de tempos cirúrgicos, embora possam ser feitos ao longo de meses, pode no seu total ser elevado”, garante. O custo pode ultrapassar os 25 mil euros. “Na época, paguei 10 mil euros pela cirurgia. Depois, quis melhorar a estética dos pequenos lábios e paguei mais 4 mil (não era necessário, foi por vaidade). Além disso, fiz uma frontoplastia que é limar a parte frontal do crânio/testa. Foi uma questão estética, para a feminização da testa: paguei mais 6 mil euros. Fiz implantes de silicone para aumentar os seio e paguei 5 mil. Paguei uma vez por semana, 70 euros de consulta na psicológica durante 10 meses o que dá 2,800 euros, fora a deslocação até Lisboa. Tudo incluindo ficou quase 28 mil euros”, revela Isabel.

Medicação para toda a vida

Esta admite que quase tudo no processo lhe custou muito, menos a cirurgia que foi a realização de um sonho, “algo como nascer de novo”. “Em termos de dor, sem dúvida que me custou mais as dilatações que são necessárias e que tive que fazer no pós operatório”, lembra. “Mas o que custou mesmo foi ter que ir uma vez por semana à psicóloga durante quase um ano a pagar um balúrdio por cada consulta que julguei desnecessário no meu caso. Foi apenas para completar o número de consultas exigidas nesse processo”, lamenta. “A psicóloga não ajudou em nada e não me perguntava nada de relevante. Às vezes eu ficava sozinha na sala e quando ela entrava só me perguntava como tinha sido a minha semana”, garante.

De acordo com a mesma, a medicação é para toda a vida. “Quando faz a cirurgia, toda a mulher trans pode ficar como se estivesse na menopausa, pois não tem os ovários para produzir os estrogénios e as glândulas supra renais. Ou seja, não produz a quantidade suficiente de hormonas sexuais de uma mulher jovem. Precisamos, por isso, de compensar essa deficiência, inclusive com testosterona em alguns casos, porque as mulheres também precisam de uma pequena quantidade desse hormónio”, detalha. “No meu caso terei de tomar Estradiol e progesterona para a vida toda. Se deixar de tomar não vou morrer, assim como uma mulher cisgénero (termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspetos, com o seu género de nascença),que retira os ovários vive bem sem eles, mas causa sintomas de menopausa como calores e dificuldade em perder peso”, acrescenta. O balanço que faz é positivo. “Consegui realizar o que me propus a fazer… Claro que as coisas poderiam ter acontecido um pouco mais rápido, mas aprendi a acreditar em mim e ter paciência. Não me arrependo de nada que fiz. Sou mesmo muito orgulhosa de mim”, frisa Isabel.

Cirurgias só depois dos 18

Tal como referido, em Portugal, as cirurgias só podem ser realizadas a partir da maioridade. Mas, em certos casos, João Décio Ferreira, não vê impedimento para serem feitas mais cedo. “Conheço casos de indivíduos de menos de 18 com ‘cabeças’ muito melhores que adultos, mas será melhor, por uma questão de segurança, não facilitar. Os 18 anos são considerados o início da idade adulta, é aceitável que assim se proceda pois estas cirurgias não são totalmente reversíveis. Por exemplo: numa faloplastia nunca cria um pénis 100% igual a um Falo Biológico”, explica o médico. “Se perguntar a qualquer mulher trans verdadeira, ela vai dizer que é um absurdo e que a cirurgia deve se fazer o mais cedo possível. Digo ‘mulher trans verdadeira’ porque hoje em dia qualquer pessoa se auto declara como trans sem verdadeiramente ser”, responde por sua vez Isabel. “Penso que o corpo de um adolescente não está preparado para esta cirurgia… Aliás, tenho dúvidas se uma neo-vagina acompanharia o crescimento de um corpo em desenvolvimento… Tenho dúvidas se a pessoa não se tornaria uma adulta com uma vagina infantil. Havendo indicação clínica sou a favor que se faça antes dos 18 anos. Agora, a terapia hormonal deve sem dúvida nenhuma ser iniciada na pré-adolescência, antes da puberdade, isso evitaria voz e características físicas masculinas, sem necessidade de ter que fazer futuramente cirurgias plásticas de feminização facial e corporal”, afirma.

No que toca aos casos de arrependimento, o médico afirma que, quando o diagnóstico é feito por uma Equipa Multidisciplinar de Sexologia Clínica competente, não conhece nenhum caso diretamente relacionado com esta patologia. “Com diagnóstico feito fora de Equipa Multidisciplinar de Sexologia Clínica competente infelizmente conheço um, operado no Estrangeiro, que tentou o suicídio. Claro que há sempre um grande risco de suicídio em casos operados por quem não tem aptidão nem preparação para realizar estas cirurgias, mas que não resista a fazer autênticas barbaridades cirúrgicas… Já vi algumas situações destas de difícil (mas nunca de correção impossível). Tenho registos fotográfico que evidentemente não posso facultar por estarem sob sigilo médico”, revela João Décio Ferreira. Segundo investigadores do ramo sociológico, em Portugal, a ausência de dados é evidente. Até porque não se sabe quantas pessoas trans existem no país ou quantas estão no processo para cirurgia.