Intoxicação alimentar

Claro que Marcelo queria apenas rapinar o protagonismo de Abril, centrando sobre si holofotes e falatórios.

Marcelo consegue ser bazófias xenófobo e um ativista woke no mesmo jantar, simultaneamente. É obra! O ocupante de Belém já não puxava uma destas desde o referendo da ivg, com o seu célebre ‘é proibido mas pode-se fazer’. É extraordinário que, num evento com jornalistas estrangeiros, o Presidente da República (PR) caracterizasse o primeiro-ministro como sendo de um país profundo, urbano-rural, com comportamentos rurais? É incrível que, nesse mesmo repasto tenha referindo-se a António Costa como um homem lento por ser oriental?

E é incrível que, exatamente nesse mesmo evento, o PR afirmasse que Portugal «assume toda a responsabilidade», lembrando que os crimes, como os massacres coloniais, tiveram custos? É mirabolante que, súbito, sugerisse até ressarcir erros do passado? É sim. É mirabolante, incrível, extraordinário e muito mais. O Presidente da República consegue esse feito épico de ser classista/racista e wokista ao mesmo tempo, praticamente concorrendo com o vivo/morto do gato de schrödinger. Já sabíamos que entre selfies e verborreias o PR é quase omnipresente. Agora conhecemos-lhe novo talento secreto, ser a mesma coisa e o seu contrário em tempo real. Parabéns à prima.

Claro que Marcelo queria apenas rapinar o protagonismo de Abril, centrando sobre si holofotes e falatórios. A sua política pudim não é de agora, de resto. Só que hoje casa com uma comunicação social/comentariado político globalmente ainda mais acéfalo do que há uns anos e que desata a discutir freneticamente o rural, o oriental e o colonialismo sem sequer dar conta da flagrante contradição.

Sublinhar a grossa incongruência é fundamental para derrubar o discurso postiço e em falsete sobre as ditas reparações. Não há um fio de cabelo inclusivo em Marcelo que é ainda mais orientalista, snob e possidónio do que hipocondríaco.

Marcelo Rebelo de Sousa deve o seu nome a Marcello Caetano, padrinho de casamento dos seus pais. O seu pai foi até o último governador colonial de Moçambique. Aliás, Baltazar Rebelo de Sousa, ministro do Ultramar, teve a tutela do Campo de Concentração do Tarrafal. Esta semana, o seu filho está no Tarrafal celebrando a libertação dos presos políticos desse campo de concentração, a 1 de Maio de 1974. É esta a verdadeira reparação que o presidente da república quer ou tem que fazer – as contas e acertos com o seu próprio passado e não com o meu ou o seu, caro leitor. Já sabíamos que o PR confunde, com frequência, o bem nacional com o seu bem pessoal. Mas isto é demais.

Enfim, a fala balofa das reparações também escondeu o essencial das comemorações Abril/Maio. Meio século depois, o salário médio está cada vez mais perto do salário mínimo, as classes médias arrasadas fogem do país, Portugal é o rabo da Europa, as elites são sabujas e não há qualquer independência dos políticos ou da comunicação social face aos poderes fácticos. Mas disso não podia falar Marcelo que sempre serviu esses mesmos grandes interesses – ou já se esqueceram como defendeu com unhas e dentes Ricardo Salgado, insistindo na solidez da banca quando a mesma já estava no abismo?

Pois. Mas discutir isto num pequeno banquete com corresponderes estrangeiros talvez fosse um pouco indigesto. Talvez até intoxicação alimentar.