Não importa com quem vamos…

A reforma de que hoje precisamos é profunda, não se satisfaz com medidas sectoriais, e deverá assimilar quaisquer progressos reais entretanto conseguidos.

Demitiu-se recentemente o Director Executivo do SNS, demissão que tem merecido comentários dos mais diversos sectores da sociedade e que ocorre no momento em que é unanimemente reconhecida a situação calamitosa do Serviço Nacional de Saúde e a necessidade duma reforma urgente. O governo cessante entendeu, em desespero de causa e de tempo, empreender uma reforma do SNS, uma reforma que encarava a saúde como mais um serviço público e que persistia no mesmo rumo que a tinha conduzido à situação calamitosa que hoje vivemos: uma visão estatizante que continuava a acumular no Estado as funções de provedor, de regulador, e de financiador da saúde e a manter o SNS como seu executor. Ignorava assim o peso de outros prestadores no sistema de saúde, aqueles a quem, por necessidade imperiosa, os portugueses têm vindo a cada vez mais recorrer. Numa palavra, mantinha o SNS não como a desejável trave mestra do sistema de saúde, mas como a trave única da saúde dos portugueses. A curadoria técnica dessa intentada reforma foi entregue a uma figura prestigiada e de bem reconhecida competência, mas as reformas têm sempre uma visão política, visão a que a acção estratégica não poderá eximir-se. Ainda, uma reforma será mais do que um conjunto de medidas sectoriais, será mais do que uma mudança, e deverá conduzir a uma transformação. Para tal começará pelo topo, elencando as necessidades de saúde, estabelecendo o modelo de financiamento e escolhendo os prestadores. Depois, considerará a prioridade dos programas de prevenção e de tratamento e finalmente deverá escolher o modelo de organização e gestão, a estratégia para o pessoal, a avaliação dos resultados, a medição e a orientação para o valor e a satisfação criada para a sociedade. Ora, independentemente da competência e do compromisso dos seus autores, a reforma debutada focou-se exclusivamente no SNS, como se a saúde se resumisse ao SNS, sem o encarar como eixo fulcral dum bem integrado e colaborativo ‘sistema de saúde’: talvez devesse antes ter partido do cidadão para o sistema, rede a que este deveria ter acesso livre, tendo o Estado como provedor – regulador da sua saúde. Só que essa não era a visão política à época.

Não questiono os possíveis ganhos de eficiência e eficácia trazidos pelas Unidades Locais de Saúde, uma experiência virtuosa testada há anos a norte e seguindo o modelo britânico das ‘health authorities, modelo este que bem conheci. Já sobre a sua implementação em ‘fórmula única’ estarei menos certo, e que tem sido criticada por não parecer adequada a todas as tipologias hospitalares envolvidas, nomeadamente à complexidade dos centros académicos clínicos. O que me permito questionar é o impacto efectivo dessa mudança sem a adopção prévia de medidas sistémicas a montante, nomeadamente o assumir dum modelo de financiamento misto (estado e mutualismo) que desonerasse o esforço financeiro das famílias, a criação duma sólida plataforma electrónica que pudesse ligar em tempo real todo o Sistema de Saúde tendo o doente no seu centro, a par com uma estratégia radicalmente diferente para o pessoal, que permitisse motivar e recativar para o SNS os profissionais de saúde que entretanto o foram deixando. A proposta de remuneração indexada à complexidade tratada e ao desempenho de quem trata, igualmente inspiradas no SNS inglês (‘money follows patient’), fazem sentido, mas serão de difícil e morosa implementação se não forem precedidas das alterações estruturantes acima referidas.

Finalmente, enquanto percebo a opção por um modelo fortemente centralizado e de dilatados recursos para a Comissão Executiva, não deixam de me preocupar os riscos reais inerentes às macroestruturas centrais fortemente empoderadas, quando se trata de gerir toda uma vasta rede de saúde. O que se ganha em controle perde-se em agilidade e arrisca-se na complexidade criada.

Revendo os comentários à demissão da Direcção Executiva do SNS estes têm um traço comum – competência e serviço – variando só no seu tom consoante as orientações políticas. Isso é normal porque a reforma serviu uma dada visão política. Assim, não nos deverá surpreender que o novo governo tenha para a saúde uma visão diferente, a sua própria visão política, e que busque para a sua realização uma estratégia técnica também diferente. É normal e era previsível.

O que acho menos positivo é que continuemos a não conseguir obter para o nosso país as necessárias pontes de convergência política que possibilitem pactos estratégicos duradouros sobre temas de interesse fundamental e de inequívoca transversalidade, como é o caso da Saúde. Assim evitaríamos que as reformas fossem iniciadas e terminadas ao ritmo incerto das mudanças político-partidárias, independentemente das evidências de efectividade produzidas. E não falo só desta tentada reforma, falo dos muitos modelos ensaiados ao longo do tempo, da gestão hospitalar, à tipologia dos Centros de Saúde, às parcerias público-privadas, e ao recente alargamento das Unidades Locais de Saúde. A saúde dos portugueses dificilmente resistirá a tantas mudanças e precisava de mais dilatados entendimentos conducentes a reformas verdadeiramente transformadoras.

Por conhecimento próprio estou muito tranquilo sobre a competência da actual tutela da saúde, em quem identifico uma decidida visão reformista. A reforma de que hoje precisamos é profunda, não se satisfaz com medidas sectoriais, e deverá assimilar quaisquer progressos reais entretanto conseguidos. Como disse o filósofo, não importará tanto se vamos de mãos dadas, tão pouco com quem vamos, mas sim se vamos juntos e pelo caminho certo. É que esse será o caminho que leva à saúde dos portugueses.

Médico
Professor Universitário