Desde 1973, pelos meus verdes 16 anos liceais, fui mais ou menos enquadrado na luta política da oposição ao regime do Estado Novo, na altura, velho e agonizante. Vivi e aclamei a semana do 25 de Abril de 1974 jubilosamente, a liberdade à solta, mas em curtos meses perdi a ilusão já esclarecida. A data nunca a comemorei, tão pouco a repudiei, fiz dela trepasse a feriado cómodo. Aproveito a onda abrilista dos 50 anos de contas pessoais para me explicar.
No balancete do 25 de Abril importa percebê-lo na sequência do Estado Novo, o regime nascido do 28 de Maio de 1926. Ao Portugal crispado e dilacerado da 1.ª República, precipitada porque regicida, juntara-se o medo aterrorizante do que nos chegava das estepes soviéticas desde 1917. O horror ao comunismo deu o fascismo italiano, o nazismo alemão, o franquismo espanhol e a autocracia de Salazar sob a qual se refugiaram os portugueses durante 40 anos. A consolidação financeira foi notável, a soberania nacional reforçada, a alfabetização gradual, o incremento económico e social mostrou-se sólido. Os portugueses, poupados à II Guerra, sentiram-se protegidos e gratos pela segurança, cedendo na liberdade. Daí a censura e a polícia política, vexames que nenhuma mente saudável aceitava. Os mais ousados e criativos viram-se cerceados. Entre 1950-74 foram anos de ouro de desenvolvimento, o pico deu-se nos anos 60 apesar da guerra ultramarina. Neste ambiente geral pacificado as pessoas iam falando com razoável abertura em círculos algo fechados, com uma única exceção, o partido comunista. Os opositores democráticos de vários matizes, monárquicos ou republicanos, diziam o que tinham a dizer nos períodos eleitorais que Salazar ganhava e depois recolhiam-se às suas publicações consentidas. O regime só se assustou em 1958 com Humberto Delgado. Ao invés, aos comunistas, e aberta a Guerra Fria após 1945, era-lhes feita perseguição inflexível. Afinal, queriam derrubar o poder e em seu lugar erguer um regime totalitário similar ao da URSS, terror a evitar.
Este o retrato até 1968, tendo Marcello Caetano iniciado a primavera que vivi nos meus verdes anos. E daqui começa hoje o meu desvio de perceção (eu que vivia no Alentejo) quando leio as visões pessoais de gente agitada, ainda febril, pelos 50 anos do 25/Abril. Indico recentes testemunhos publicados de quem diz ter vivido o marcelismo e fico atónito com a efabulação e as narrativas mentais de um passado que eu não vi. E dizem que aos 16 anos não podiam fumar (eu comecei aos 15); que só andavam de bicicleta com uma licença camarária (sim, para saberem um mínimo de regras de trânsito); que na rua era proibido estarem mais de três pessoas à conversa, os pides não deixavam (estiveram a ler banda desenhada?); que se lembram (?!) que as mulheres não arranjavam o cabelo, não podiam ir aos cafés, andavam de lenço e com saias até aos pés (estiveram a ver fotos da 1.ª República?). É notório o desfasamento das modas sociais, as lembranças refeitas em acertos ideológicos. Será doença, fanatismo ou infantilismo?
Caros concidadãos, abrilistas ou não, permitam em modo aforístico a minha visão em voo rasante entre o 25/Abril e o 25/Novembro: foi um golpe corporativo e militar de capitães que, não tendo ideário democrático consistente, preencheram o vazio político entregando o poder ao partido comunista e seus afins, via MFA (=PREC); daqui a revolução socialista em tom soviético que militares moderados e o povo, esmagadoramente, recusaram até ao desfecho do 25/Novembro. Cabe tudo aqui. Acusadoramente a esquerda mental dominante veio a abocanhar as celebrações do 25/Abril quando, uma vez no ano, de cravo na mão, desce a Avenida. A direita esparvoada pede licença para entrar na cauda, se a deixarem, como pedintes de última hora. Eu por mim dispenso, fico-me com o feriado. De como vi os últimos 50 anos, fica para outro dia.