O Contexto Geopolítico do 25 de abril e da descolonização portuguesa.

O valor do 25 de novembro residiu em ter-se oposto, exclusivamente com apoios internos, a uma movimentação militar que dispunha de um contexto favorável externo.

Este ano, em que se comemoram cinquenta anos do 25 de abril, foi precedido em poucos meses da morte da pessoa que, provavelmente, mais terá contribuído para a alteração do contexto geopolítico mundial que propiciou a revolução de 1974.

Nós, portugueses, temos tendência para olhar os eventos da nossa história isoladamente, sem os inserir no contexto externo que os propiciaram ou condicionaram. Por exemplo, olhamos para a Batalha de Aljubarrota sem a inserir na Guerra dos 100 anos; a conquista de Ceuta sem levar em conta a paz separada entre Castela e Inglaterra de 1388; a perda da independência em 1580 isoladamente da Reforma Protestante e da progressão do Império Otomano para o Mar Vermelho, em simultâneo com o avanço no Magrebe; a restauração de 1640 fora do contexto das revoltas da Flandres e da Catalunha; e por aí em diante. O historiador Jorge Borges de Macedo constitui provavelmente a mais notável exceção a esta tendência, com a sua “História Diplomática Portuguesa”, elaborada numa perspetiva geopolítica.

Também o 25 de abril se inseriu num contexto internacional próprio, nomeadamente o da Guerra Fria, que começou por volta de 1947 e terminou em1991 com a queda do muro de Berlim.

A Guerra Fria, em termos geopolíticos, é inseparável da descoberta da Bomba Atómica. O ensaio de George Orwell “You and the Atomic Bomb”, publicado no Tribune em 1945 – plenamente válido nos nossos dias e no qual consta pela primeira vez o termo “Guerra Fria” – explica bem o relacionamento entre a progressiva complexidade do armamento e as suas consequências na política externa global: “a Bomba Atómica” coloca os países que a possuem “numa base de igualdade militar. Incapazes de se conquistarem uns aos outros, é provável que continuem a governar o mundo entre eles”, construindo “Estados simultaneamente inconquistáveis e em estado permanente de ‘guerra fria’ com os seus vizinhos”.

A profecia de Orwell começou a tornar-se realidade em 1954 com a Doutrina de Retaliação Maciça do State Secretary John Foster Dulles, onde se reconhece a impossibilidade de contrariar o aparecimento de insurgências e conflitos regionais em todo o globo exclusivamente através de guerras convencionais –  como as da Coreia e do Vietname  –  e se assume a necessidade de criar um novo sistema defensivo que providencie “a máxima proteção a um custo aceitável”, apoiado na premissa essencial de “uma grande capacidade de retaliação, instantânea, através de meios e em locais da nossa escolha”. A 16 de março de 1954, Dulles especificou que o Presidente norte-americano não precisava de autorização do Congresso para ordenar “retaliações instantâneas”. Em consequência, qualquer conflito regional poderia desencadear uma guerra nuclear total e o consequente aniquilamento da humanidade, tal como a conhecemos.

Esta doutrina podia manter-se apenas enquanto os EUA fossem o único país a dispor de armas nucleares, ou até enquanto dispusessem de superioridade em qualidade ou quantidade destas armas. Mas aproximavam-se tempos em que a União Soviética, não apenas teve acesso à arma nuclear, como alcançou um estatuto de paridade com os EUA, e até o ultrapassou no tempo de Kennedy. Mais, o aparecimento de sistemas de misseis intercontinentais tornava o território dos EUA vulnerável a um ataque nuclear a partir da URSS, que por sua vez já era, há muito, vulnerável a partir dos países nucleares europeus da NATO. Neste contexto, um conflito regional poderia levar a uma retaliação nuclear maciça, mas a esta seguir-se-ia uma nova retaliação da potência inimiga que aniquilaria a primeira, resultando num empate militar que anulava a posse de armas nucleares face aos restantes países do globo.

Face ao empate nuclear, tornava-se essencial mudar a doutrina para recuperar a capacidade de intervenção regional sem o perigo de desencadeamento de uma guerra total. O risco de uma potência nuclear intervir num conflito regional era demasiado grande, face à ameaça de deflagração nuclear global: quanto mais pesadas fossem as consequências de uma guerra total, mais relutância teriam os líderes políticos responsáveis em empregar a força nuclear. A posse de armas nucleares estava a transformar-se numa desvantagem a nível dos conflitos regionais, mesmo no tempo da supremacia nuclear exclusiva. O poder excessivo levava à paralisia da vontade de projetar a força: embora os EUA tivessem um claro monopólio nuclear até 1949, não conseguiram extrair qualquer vantagem dessa assimetria durante o bloqueio de Berlim, nem no decurso da Guerra da Coreia, nem perante a invasão soviética da Hungria. As armas nucleares providenciavam excesso de poder aos seus detentores, especialmente se limitados por considerações de ordem moral.

O papel que coube a Henry Kissinger, recentemente falecido em novembro de 2023, foi precisamente o de lidar com o problema político-militar da paridade nuclear entre os EUA e a URSS; de certa forma coube-lhe criar o sistema de “governo do mundo” dos Estados nucleares mencionado por Orwell.

Os EUA estavam preparados para aceitar a paridade nuclear e renunciar à corrida aos armamentos: para que interessava competir mais e gastar mais recursos se os arsenais nucleares de ambos os países tinham adquirido capacidade total de destruição mútua e deixado muito para trás os mais avançados dos restantes Estados do mundo? O problema residia em balizar, nos constrangimentos da paridade estratégica, a área que restava para a competição política regional.

A solução proposta por Kissinger foi a doutrina da “Resposta Flexível”, teorizada no seu livro “Nuclear Weapons and Foreign Policy”, de 1957. Baseava-se na premissa de que os conflitos regionais da era nuclear eram muito diferentes uns dos outros, e exigiam um leque diferenciado de respostas em vez da estratégia única da guerra total. Respondendo proporcionalmente às ameaças, a dissuasão podia ser mais credível: criando uma hierarquia de respostas, o ónus de parar a escalada era colocado no adversário. A solução consistia também em implementar um sistema que permitisse “guerras nucleares limitadas”, já que evitar uma guerra total era mutuamente benéfico para ambos os beligerantes. E os EUA tinham vantagem em armas nucleares táticas, que queriam ver desdobradas na Europa.

 A doutrina da “Resposta Flexível” permitiu a assinatura do “Acordo sobre Princípios Básicos para as Relações EUA-URSS” em 29 de maio de 1972, segundo o qual os EUA e a URSS se comprometeram a “não obter vantagem unilateral à custa do outro” e o “Acordo Sobre Prevenção da Guerra Nuclear” de 22 de junho de 1973, cujo art. 1º previa que “as partes convencionam fazer tudo ao seu alcance para que não surjam conflitos ou situações que sirvam para aumentar a tensão internacional”, obrigando-se, no art. 4º, “a empreender consultas e a entrar de acordo imediatamente … de forma a desencorajar o aparecimento de conflitos”. Por sua vez, os acordos de desarmamento ABM e SALT-I de 3 de outubro de 1972 reconheciam e visavam o objetivo de manter a paridade estratégica entre as duas superpotências. O relacionamento entre as duas superpotências passava a basear-se em dois grandes princípios: paridade nuclear e cristalização dos conflitos regionais. Esses eram os pilares básicos da “Détente” idealizada por Kissinger.

O ponto fraco dos acordos jazia precisamente nos conflitos regionais, como aliás tinha sido previsto pelo próprio Kissinger no livro de 1957: “A União Soviética, sendo uma potência revolucionária, tem uma vantagem fundamental, na era nuclear, sobre uma potência que defenda o status quo como os EUA. Isto porque a potência insatisfeita com a ordem internacional vigente tem maior propensão a correr riscos. Uma vez que a dissuasão é essencialmente um fenómeno psicológico, essa inclinação para a tomada de riscos provoca uma reação do Estado defensor do status quo destinada a desafiar o comportamento mais arriscado do poder revolucionário. No entanto, o medo da catástrofe nuclear pode comprometer a vontade de reagir por parte da potência do status quo, porque está satisfeita com a ordem existente.” Isto concedia à União Soviética maior iniciativa, belicosidade e liberdade de atuação nos conflitos regionais.

Ao tentar explicar a Détente no contexto do Conflito Israelo-Árabe de 1973, Kissinger acaba por contradizer a letra dos Acordos de 1972, assumindo efetivamente que esta não se destinava a impedir as crises regionais: “Claramente a Détente não impediria a crise [referindo-se à a Guerra do Yom Kipour] … pois Détente define, não amizade, mas uma estratégia para o relacionamento entre adversários”.

Também a diferente natureza do regime soviético, em comparação com o regime democrático dos EUA, colocava estes em desvantagem. Enquanto a URSS não necessitava de justificar intervenções militares externas perante a sua opinião pública, os norte-americanos tinham e têm em vigor “checks and balances” que condicionam a atuação da Administração e garantem a conformidade com a legalidade e vontade popular representada no Congresso. A Détente, definida por Kissinger como “estratégia de relacionamento”, pressupunha que guerras por proxy fossem aceites por uma sociedade democrática e transparente como a americana, pois comportava a continuação das hostilidades sob um manto de apaziguamento e formalização jurídica que eram os tratados celebrados. Tratados que, como se depreende das declarações do antigo Secretary of State, apenas serviam para balizar os conflitos regionais e não para os evitar.

Este é o contexto geopolítico do 25 de abril e da descolonização portuguesa: o da Guerra Fria entre as duas superpotências, em que a mudança da doutrina nuclear norte-americana da Retaliação Maciça para a Resposta Flexível conferiu iniciativa e concedeu vantagens à URSS nos conflitos regionais.

No caso da Guerra do Yom Kipour, não faltou o apoio norte-americano a Israel, mas na Guerra Civil angolana, tanto o presidente Gerald Ford como Henry Kissinger declararam, nos “Angola Hearings” do Congresso, que o que falhou “não foi a Détente, mas a recusa do Congresso em deixar o executivo empreender a Détente, por ter impossibilitado uma escalada militar secreta norte-americana”. A tentativa diplomática dos EUA de impedir a ajuda sovieto-cubana a um dos lados da Guerra-Civil angolana, ameaçando a URSS com os efeitos adversos que isso provocaria no processo de Détente, não foi credível. A liderança soviética não estava disposta a renunciar ao direito de ajudar movimentos revolucionários amigos em nome da Détente. Mais: o papel soviético na Guerra Civil angolana não era visto como extravasando dos standards da competição pelo Terceiro Mundo formalizada em 1972 e 73 e, portanto, também praticada pelos EUA.

A guerra colonial portuguesa começou em 1961, ainda no decurso da vigência da doutrina da Retaliação Maciça, mas o 25 de abril e as descolonizações portuguesas – que provocaram 1 milhão de deslocados internos portugueses, Guerras Civis em Angola e Moçambique com cerca de 2 milhões de mortos e mais de 4 milhões de deslocados internos – ocorreram em plena vigência da doutrina da Resposta Flexível, que permitiu maior iniciativa e vantagem à URSS nos conflitos regionais.

O resultado foi o abandono da Détente em dezembro de 1975 devido “ao envolvimento soviético em Angola, Portugal e o Médio Oriente e burla nos pactos de armamento nuclear” (New York Times, 29 de dezembro de 1975):

O antigo-Presidente Ramalho Eanes confirmou recentemente que, após o 25 de abril de 1974 “o PCP … preparava-se efetivamente para estabelecer em Portugal um regime totalitário” e que a descolonização “foi trágica”. Em 25 de Novembro de 1975 houve “uma ofensiva militar … organizada levianamente pela extrema-esquerda, mas em que o PCP não podia ter deixado de intervir”, perante a qual ele e outros militares foram obrigados a agir. “Tivemos essa ação, enfim, e repito que podia ter levado a uma guerra civil e que foi indispensável o 25 de Novembro. Repito: foi indispensável, para que as promessas de honra dos militares à população fossem realizadas”. O desfecho do 25 de Novembro deveu-se aos “militares que se tinham mantido fiéis à promessa de honra que tinham feito à população, que era devolver-lhes a liberdade, mas a liberdade sem condicionamentos” e que “resolveram, perante uma insurreição armada responder — bom, e a uma insurreição armada, naturalmente, só se responde com armas”.

O valor do 25 de novembro residiu em ter-se oposto, exclusivamente com apoios internos, a uma movimentação militar que dispunha de um contexto favorável externo.

Entretanto, Kissinger, aprendiz de feiticeiro das doutrinas nucleares, foi saindo discretamente da cena governamental norte-americana.

Nota: as citações de Henry Kissinger e Gerald Ford foram retiradas do livro de Raymond L. Garthoff, “Détente and Confrontation, American-soviet relations from Nixon to Reagan”, 1985 The Brookings Institution, USA).