Era tão campestre como Alberto Caeiro, Miguel Hernández, nascido em Orihuela, província de Alicante, e quase tão analfabeto como António Aleixo. Pastor de cabras desde menino, os espaços livres encantavam-no, tal como o encantavam os campos de futebol. Fui considerado uma das figuras da Generación del 27, um conjunto de escritores e poetas espanhóis que se deu a conhecer precisamente por volta do ano de 1927. E em 1927, Miguel tinha apenas 17 anos e um impulso crescia dentro dele como um destino. O destino de se exprimir em palavras que rimam. Sabia ler pouco, mas lia muito, mesmo atrapalhado: Garcilaso de la Vega, Luis de Góngora, Calderón de la Barca. Com 24 anos saiu pela primeira vez da sua courela e viajou para Madrid na ânsia de poder contactar os intelectuais que admirava. Nunca lhe faltou iniciativa. A pastorícia não lhe adormeceu os nervos nem lhe pacificou a alma. Com Pablo Neruda fundou uma revista chamada Caballo Verde Para la Poesía. Com Pablo Neruda aprendeu as ideias do marxismo e lutou, de arma na mão, na Guerra Civil de Espanha contra o exército franquista. Cavou trincheiras, foi capturado, morreu tuberculoso e esfomeado nos cárceres do Caudilho onde, escreveu, «las ratas cagaban en mi cabeza».
Na sua juventude, Miguel, que nunca deixou de ser jovem, nem depois de morto, com apenas 31 anos, jogou futebol no Orihuela. Era médio-centro mas o jogador que o encantava era Lolo Sampedro, o guarda-redes que morreu ao defender uma bola que o levou a rebentar com a cabeça contra um dos postes da sua baliza. Sampedro marcou também a sua poesia: «¡Ay fiera! En tu jaulón medio de lino/se eliminó tu vida!».
Há, convenhamos, algo de poético em todos os guarda-redes e nenhum outro posto no futebol mereceu tanta poesia. Rafael Alberti, mais um da Generación del 27, escreveu em 1928 a famosa ode dedicada ao keeper húngaro do Barcelona Franz Platko: «Ni el mar, que frente a ti saltaba sin poder defenderte. / Ni la lluvia. Ni el viento, que era el que más rugía. / Ni el mar, ni el viento, Platko, / rubio Platko de sangre, / guardameta en el polvo, / pararrayos. / No nadie, nadie, nadie…». Provavelmente o poema mais famoso escrito em castelhano sobre um futebolista. Mas talvez pela intimidade que Orihuela criou entre Miguel Hernández e Lolo Sampedro, o poema que o primeiro escreveu sobre o trágico desfecho do segundo seja mais doloroso, mais como o sino da aldeia de Fernando Pessoa, essa aldeia que era o largo de São Carlos, o sino que era o da Igreja dos Mártires, dolente na tarde calma, tão como triste da vida. «A los penaltys que tan bien parabas/acechando tu acierto/nadie más que la red le pone trabas/porque nadie ha cubierto/el sitio, vivo, que has dejado, muerto». O sítio vivo que Sampedro deixou, já morto, era a baliza. A baliza que defendia com toda a sua alma, a baliza que cruelmente o matou.
A trajetória de Miguel Hernández como poeta publicado começou numa revista fundada pelo seu amigo de infância, outro natural de Orihuela, e que avançou a seu lado na aventura de Madrid sem um ‘duro’ nos bolsos, Ramón Sijé: El Gallo Crisis. Aos poucos, uma forte influência gongórica tomou conta da escrita de Miguel e isso marcou profundamente o seu primeiro livro Perito en Lunas que só veria a luz do dia em 1934. As obras seguintes deram lugar à divergência, sem dúvida pela aculturação que foi acumulando com o convívio com outros escritores da sua geração e que procuravam fugir à influência dos clássicos. Os ventos de guerra tornaram-no mais duro que os rochedos que trepava quando, em menino, seguia cabras pelos montes e vales da região de Alicante. Viento del Pueblo, uma recolha de poemas, conta com a pungente Canción del Esposo Soldado, dedicada à sua mulher, Josefina Manresa: «Espejo de mi carne, sustento de mis alas/te doy vida en la muerte que me dan y no tomo./Mujer, mujer te quiero cercado por las balas/ansiado por el plomo».
Miguel Hernández foi um homem que sofreu. A sua escrita é sofrida e a dor acompanhou-o duramente no final da sua vida que acabou por ser ainda mais trágica do que o final da vida de um guarda-redes que morreu com a cabeça esmagada contra um poste da baliza que jurara manter segura. Não foi apenas por serem ambos de uma pequena terra perdida no sul da grande Espanha que Miguel e Lolo ficaram unidos para sempre. Foi também pelo futebol e pela poesia. Quem diz que não há poesia no futebol não sabe nada de futebol nem sabe nada de poesia. Há tanta poesia no futebol e os poetas procuram-no para declarar os seus sentimentos._Há tanta poesia no futebol como poesia na morte. «Fue un plongeón mortal. Con ¡cuánto! tino/y efecto, tu cabeza/dio al poste. Como un/sexo femenino/abrió la ligereza/del golpe una granada de tristeza».