Os “novos” imigrantes. Um outro país dentro da capital

Chegam todos os dias oriundos de países como o Senegal, Bangladesh, Paquistão e Índia. Escolhem a Rua do Benformoso para se fixarem e já são poucos os portugueses que por lá passam. Ao mesmo tempo, aumentam o número de sem-abrigo no país. Estas são duas das maiores preocupações em Portugal neste momento.

Há quem já lhe chame “Little India” ou “Banglatown”. Por outro lado, quem não conhece o panorama geral da capital talvez não acredite que as imagens que vão circulando nas redes sociais sejam reais. A verdade é que a Rua do Benformoso tem estado no centro das atenções há uns anos – sempre foi um palco “meio escondido” de venda de droga e prostituição -, mas nunca como agora. Quem passa nesta estreita rua que liga o Largo do Intendente ao Martim Moniz é transportado para outro espaço. Um outro país dentro da cidade. É difícil encontrar um português. E se para uns isso é bom, ou indiferente, também há quem o tenha medo. Lado a lado com aqueles que deixaram o seu país na busca por uma vida melhor, em recantos mais escondidos ou nos degraus de algumas portas – bem visíveis – vemos pessoas a fumar crack com os seus cachimbos.

O número de imigrantes residentes em Portugal tem vindo a aumentar consecutivamente nos últimos anos. Segundo a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) são já mais de um milhão e, apesar do número oficial ainda não estar explanado em nenhum relatório, tal como escreveu o Expresso há duas semanas, é certo que os cidadãos estrangeiros com autorização de residência em Portugal são atualmente cerca de 10% da população nacional. As nacionalidades mais representativas continuam a ser o Brasil, a Ucrânia, o Reino Unido, Angola e Cabo Verde. No entanto, são cada vez mais as pessoas que chegam do Nepal, Senegal, Bangladesh, Paquistão e Índia. Além disso, por dia há cerca de mil novos pedidos de legalização. E é, sobretudo na Rua do Benformoso/ Mouraria que se fixam, em muitos casos, por conhecerem alguém que veio do mesmo local.

Uma vida de trabalho A manhã está quase a terminar e o cheiro de comida já se sente no ar. Ao contrário das imagens que muitas vezes se veem nas reportagens que têm passado nos últimos meses nas televisões – com a rua repleta de gente -, o trânsito quase não permite a passagem das pessoas e, quando acalma, não há muita confusão. Há carros e carrinhas parados nos pequenos passeios dos dois lados da estrada. Ouvem-se buzinas. Fazem-se descargas de mercadorias. Ao mesmo tempo, a rua está a ser limpa, por isso, não se vê muito lixo como normalmente é reportado. Também se vê alguns tuk tuks que transportam estrangeiros que observam a movimentação. A sua descontração contrasta com o clima de trabalho daqueles que desde manhã colocaram os seus negócios a funcionar. Nesta rua, quase não “existem” mulheres. Talvez estejam dentro de casa. Dois homens conversam junto de uma das carrinhas. “Já estamos cá há 10 anos. Viemos do Bangladesh. Gostamos muito de Portugal, mas agora estamos a trabalhar, não podemos falar”, afirma um deles. Asseguram que já têm toda a documentação e que fazem pagamentos à Segurança Social. “Os portugueses são simpáticos e é bom viver aqui. Consegui o que queria, ter uma melhor qualidade de vida”, acrescenta o outro. “Mas trabalhamos muito! É bom morar aqui quando temos tudo legal”, confidencia. Recorde-se que em dezembro do ano passado, o Observatório das Migrações revelou que os imigrantes contribuíram com 1.861 milhões de euros para a Segurança Social em 2022 (ver pág. 16-17).

À porta de um prédio, onde se encontram fixados vários cartazes com críticas à Câmara Municipal de Lisboa e a Fernando Medina – “Dr. Fernando Medina sem critérios de verdade não há justiça” -, um jovem estrangeiro coloca folhas de paan em molhos. São do tamanho de uma mão e a forma de consumo assemelha-se à do tabaco de mascar. Mete na boca, mastiga um pouco e cospe. Extremamente populares na Índia, acredita-se que estas folhas ajudam a tratar a diabetes, têm vitaminas como a B e C, caroteno e niacina e são cheias de cálcio.

Ao ver-nos aproximar, sorri. No entanto, ao ser abordado, responde num inglês quase impercetível: “Desculpe, desculpe, não falo inglês nem português”. Além da paan, na caixa vê-se uma espécie de raiz seca de cor encarnada.

Num dos vários barbeiros que encontramos na rua, outro jovem, oriundo da Índia e com 30 anos, revela que chegou a Lisboa há apenas três dias e que está a adorar. “Não tenho família nem amigos aqui. Vim para Portugal porque nos falam muito bem do país. Dizem que há trabalho e que é fácil tratar da papelada. Já arranjei trabalho nesta barbearia, mas agora tenho de tratar dos meus documentos”, conta, frisando estar esperançoso de que seja um processo rápido.

Uma carrinha estaciona em frente a uma minimercearia que, apesar das limitações de espaço, parece vender tudo e mais alguma coisa: desde fruta, vegetais, a especiarias, tabaco, carne, batatas, chocolates. O proprietário tem 32 anos e é paquistanês. Chegou há três anos e não pretende voltar para o seu país de origem. “Portugal é bom, mas as rendas estão muito caras. É impossível trazer a família. Eu moro com dois amigos na Mouraria e pagamos mais de 1000 euros pela casa”, lamenta, admitindo saber que é um privilegiado por conseguir trabalhar, pagar e ter uma casa com pouca gente. “Há casas onde moram 20 pessoas e não há condições. Até tem aparecido nas notícias”, aponta. Escolheu Portugal porque vários amigos já cá moram há algum tempo. “Vim e consegui logo trabalhar na loja deles. Os portugueses são simpáticos e também conheço muitos brasileiros. Além disso, adoro o tempo de Portugal. Faz muito sol”, acrescenta.

A transformação da rua

Mas se há quem tenha chegado há pouco tempo, também há quem aqui esteja há anos, tendo visto toda a transformação da Rua do Benformoso. A Dona Alice trabalha no pequeno café do número 84 há mais de 35 anos. Por aqui, parece que o tempo não passou, mantendo-se toda a decoração típica dos cafés portugueses. Há apenas duas pequenas mesas e só uma se encontra ocupada por dois imigrantes que bebem café e conversam. “Eles são espetaculares em termos pessoais, mas fazem muito lixo. São muito desorganizados. Falo com eles, queixo-me do facto de deixarem as carnes nos lixos, mas nada muda. Devia ser proibido. Antigamente passava um carro para pegá-la e levá-la para o jardim zoológico, agora fica tudo ali. Carne exposta assim atrai muita bicharada e deita um cheiro nauseabundo”, queixa-se a funcionária do estabelecimento. Desde a pandemia da covid-19 tem visto chegarem pessoas novas todos os dias. “Agora é tudo deles… Casas que estavam fechadas há anos foram compradas por eles. Fazem o que querem. Não sei se têm as coisas legalizadas ou não, não compreendo bem como é que isto funciona”, admite. “Eu não posso vender tabaco, não posso vender almoços. Eles podem fazer tudo”, continua. Interrogada sobre o ambiente da rua, Alice garante que as pessoas são bastante pacíficas. “As únicas confusões que existem são entre eles. Não se metem com as outras pessoas”, garante. De repente, dois imigrantes entram no café, dirigindo-se ao balcão. “Dois cafés, por favor!”, pede um deles. “Vês filha, eles são educadinhos e lá vão aprendendo algumas coisas”, afirma a dona Alice.

Andamos mais uns metros. Do outro lado da rua encontra-se uma retrosaria. Luísa está ao telemóvel ao fundo de um estreito corredor. Ao ver-nos entrar, desliga a chamada e vem ao nosso encontro. “Não tenho nenhum problema com os imigrantes, mas isto está a ficar mesmo muito complicado. O maior problema aqui é a droga. Antes só havia no Largo do Intendente. Agora acumulam-se ali no chafariz e ficam ali a tarde toda, até à noite. Hoje como estão a limpar as ruas ainda não lá devem estar, mas ao final da tarde é terrível”, desabafa. “Eu moro ali em cima, sou a vítima do projeto da mesquita”, revela. Tal como havia sido noticiado pelo i em 2018, Luísa e António Barroso, o seu marido, foram vítimas de expropriações de dois prédios nesta rua, para a construção de uma mesquita. Recorde-se que a Câmara Municipal de Lisboa justifica as demolições com a necessidade de uma nova igreja muçulmana, já que “a única existente na zona da Mouraria está instalada num prédio destinado à habitação, no Beco de São Marçal, com condições muito reduzidas face às necessidades”. Desde então que o casal vem travando uma luta em busca de “justiça”. “Mas a culpa não é deles! É do Fernando Medina e do António Costa! Os imigrantes não têm nada a ver com isto”, sublinha a senhora que possui esta loja há quase 50 anos. “Não sou contra a imigração! Eles precisam de ajuda, mas são muitos. Não conseguimos assim! Não me importo que os presidentes da Câmara gostem deles, mas também têm de tratar bem os portugueses, não é?”, interroga sem esperar resposta. “Até são muito bem educados. Debaixo da minha casa está um rapaz (é novo aqui) que vende aquelas folhas, que as mastiga e cospe para o chão. Quando lhe pedi para não o fazer, foi bastante compreensivo. ‘Desculpe senhora, desculpe senhora’, repetiu. Eu disse-lhe que não fazia mal e que eu própria podia ir buscar lixívia para limpar, mas quando lá regressei já estava tudo limpo. Aliás, até me quer ajudar sempre a levar as compras para cima”, revela Luísa. “O maior problema é que as pessoas têm medo de vir a esta rua. As minhas filhas, que cresceram aqui, por exemplo, deixaram de cá vir tantas vezes e, quando vêm, não trazem os meus netos. Quando os quero ver tenho de ser eu a deslocar-me”, explica.

De mal a pior

Nem toda a gente tem a sorte de chegar e conseguir trabalho. Muitos são enganados e acabam por viver uma situação pior do que nos seus países. Muito se tem falado do cenário que se instalou na Igreja dos Anjos, na Avenida Almirante Reis. Já é hora de almoço e o movimento é muito. Está calor e o largo está cheio. Nas escadas da igreja algumas pessoas apanham sol. Outros, sentados nos muros que as circundam, bebem litrosas. No mês passado, vários imigrantes que aqui se fixaram depois de chegarem à capital foram realojados em casas cedidas pelas Câmara Municipal. No entanto, o cenário continua a ser preocupante. Um grupo de cinco jovens senegaleses aproveita a sombra. Têm telemóveis nas mãos e ouvem música. Perto das suas tendas, em pedaços de cartão amarrados às árvores lê-se: “Quero viver e trabalhar em Portugal”. Chegaram há sensivelmente quatro meses de uma longa viagem da qual não querem falar. “É muito difícil, é mesmo muito difícil”, afirma um deles em francês. “Sinto que fui enganado. Disseram-me que ia ser fácil tratar dos meus papéis, que ia ter uma vida melhor, mas não recebo respostas de lado nenhum”, lamenta. Sem papéis, não consegue trabalhar. Sem trabalhar não tem dinheiro para comer. Felizmente, com ajudas, não tem passado fome. Conta que a sua família ficou no seu país de origem, fala com ela quando consegue apanhar internet dos estabelecimentos que se encontram perto dos abrigos improvisados. “Quero trabalhar, quero ser uma pessoa normal. Não quero que as pessoas olhem de lado para mim, porque eu não sou mau. Só vim procurar uma melhor qualidade de vida”, exclama em francês com sotaque.

Cada vez mais sem-abrigo

No final do ano passado, a Lusa noticiava que Portugal tinha 10.700 pessoas sem-abrigo em 2022: 6 mil na condição de sem-teto, ou seja, na rua, num abrigo de emergência ou noutro local precário e os restantes 4.798 sem casa, a viver num alojamento temporário. Calcula-se que, só em Lisboa, no último ano o aumento foi de 25%. De acordo com o coordenador da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), Henrique Joaquim, houve de facto um aumento face a 2021. No entanto, há que ter em conta que esta foi a primeira vez que todos os municípios preencheram o questionário que “permite fazer o levantamento do número de pessoas sem-abrigo”. Interrogado se o número poderá ser mais elevado, tal como afirmam as associações de apoio a estas pessoas (que garantem que o fenómeno está a aumentar), Henrique Joaquim recusou pronunciar-se: “Estamos a falar de dois períodos temporais diferentes, portanto, uma coisa é falarmos até 2022, outra coisa é falarmos da realidade em 2023, aí não consigo dar números concretos”, explicou à Lusa, acrescentando que o método atual passa por só no final de cada ano ser aplicado o questionário de caracterização. Os dados referem que “face à população residente, existiam em Portugal continental 1,08 pessoas em situação de sem-abrigo por mil residentes”. O Alentejo, a Área Metropolitana de Lisboa e o Algarve foram as regiões que registaram as proporções mais elevadas, respetivamente 2,13; 1,60 e 1,51 (pessoas em situação de sem-abrigo por mil residentes). No entanto, de acordo com o relatório, as áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto concentram 56% do valor total de pessoas em situação de sem-abrigo. “50% dos concelhos tem, no máximo, 10 pessoas nessa situação e 21% tem até duas pessoas em situação de sem-abrigo”, acrescenta o documento.

Sentada nas escadas da Igreja dos Anjos, Paula (nome fictício) encontra-se com uma garrafa de vinho na mão. A sua pele está marcada com feridas e o sol parece fazer-lhe confusão nos olhos, que estão semicerrados. “Foi a vida que me trouxe até aqui”, afirma um pouco exaltada. “Eu tinha uma vida boa, mas já não se consegue viver nesse país. Perdi o trabalho, fiquei sem dinheiro, ainda andei em vários quartos, mas acabei por vir parar às ruas”, revela a mulher de 37 anos. Começou a fumar crack antes de ficar sem casa. “Não tenho vergonha de dizê-lo. Admito que isto também nos mata, mas ninguém nos ajuda. Parece que dão mais importância a quem chega de fora. Toda a gente precisa de ajuda, mas nós somos de cá!”, desabafa. “Não passo fome, é verdade, mas não tenho sítio onde dormir e para consumir tenho de pedir na rua”, admite.

Na sexta-feira passada, a Câmara Municipal de Lisboa anunciou um plano de 70 milhões de euros para responder, em sete anos, ao aumento do número de pessoas nesta situação, mas quer ajuda das autarquias vizinhas e da Santa Casa da Misericórdia. “Nós sabemos, pelos números, que houve um aumento significativo das pessoas sem-abrigo. A Comunidade Vida e Paz identificou mais 25% de refeições distribuídas”, afirmou Carlos Moedas, sublinhando o “agravamento da situação”. Uma das ideias é encontrar edifícios noutros municípios. “Os centros de acolhimento não podem ser só no município de Lisboa”, revelou o autarca à Renascença. Para responder ao problema de “forma coordenada”, foram convocadas as 18 autarquias que fazem parte da Área Metropolitana de Lisboa. No entanto, só cinco compareceram na reunião. Apenas Cascais e Oeiras enviaram os presidentes de Câmara.

Na capital, além dos Anjos, a Gare do Oriente e o Rossio, têm sido os locais onde se concentra a maior quantidade de pessoas em condição de sem-abrigo. Há um mês que também se veem tendas na Praça de Espanha.