Só uma cabeça profundamente afectada pela doença woke pode pôr em causa a legitimidade do Império Colonial Português e insistir com aguerrida teimosia em que, para além das colónias em si mesmas, esse Império, entretanto perdido, deve martirizar-se pelo pecado ou mesmo crime do esclavagismo que lhe está associado.
Esta posição releva de um grosseiro anacronismo. Nos séculos XV, XVI,XVII e XVIII, a posse de colónias, o tráfico de escravos e a organização de Impérios era algo tido como perfeitamente normal e legítimo. Com raríssimas excepções, o tráfico de escravos não chocava ninguém, visto que os negros eram considerados infra-humanos. Em suma: as colónias e o tráfico de escravos não só eram consensuais como, ponto muito importante, não eram crime, eram legais. De resto, a escravatura existia desde tempos imemoriais. O seu aparecimento na cena euro-atlântica foi tido como natural.
O tráfico e a escravatura, como já disse, não eram crime. Que eu saiba, sem crime não pode haver castigo. Ora o que actualmente se apregoa como um crime, não o era durante séculos, o que significa que não há lugar para reparações. Quem não entende isto, está a julgar o passado à luz dos valores de hoje. Aqui reside um escandaloso anacronismo. Por esta ordem de ideias, Portugal devia exigir reparações pela devastação que Napoleão e os seus generais impuseram ao País quando da tentativa de conquistar a Península Ibérica, a partir de 1807. Os wokes teriam aqui uma oportunidade de ouro para denunciar a barbárie francesa – que o foi – e de exibir com máximo zelo o seu empenhamento na purificação da Humanidade, em especial do Ocidente.
Essa purificação alcança-se batendo muito no peito em sinal de pedido de desculpas. Mas este gesto não basta: é preciso expiar a culpa do Ocidente, distribuindo dinheiro por todas as ex-colónias que foram vítimas do tráfico de escravos. Esta ideia, totalmente absurda, a ser levada a sério e à prática, levanta uma miríade de dificuldades, desde logo a hierarquização das ex-colónias mais ou menos vítimas dos malefícios que os negreiros – brancos e negros – lhes infligiram. A quem se paga? quanto se paga? Como se paga? Nenhuma dificuldade ou obstáculo abala o zelo woke. A bem ou a mal, hão-de reescrever a história ignorando os factos (ou inventando outros), de modo a chegarem à narrativa puramente ideológica que serve os seus propósitos.
Que propósitos são esses? em primeiro lugar, erradicar o racismo. Na visão woke do mundo, todos os brancos são racistas. Este, na Weltanschauung woke, é um axioma básico e portanto incontestável. É mais do que um axioma: é um dogma. Os brancos de todas as latitudes, mas sobretudo ocidentais, carregam eternamente esta culpa, pois dificilmente podem mudar a cor da pele. E uma vez que não podem mudar a cor da pele, resta-lhes penar e tentar lavar a sua consciência através de reparações pelos males infligidos há vários séculos.
Para que se veja bem o absurdo disto tudo, citarei o exemplo do Brasil, uma ex-colónia que já está de mão estendida. O Brasil era a pérola da Coroa. Para lá se mudou a corte portuguesa fugida em 1807 da invasão francesa. D. João VI deliciou-se com aqueles ares tropicais e por lá se foi alongando enquanto pôde. Toda a administração do Estado se mudou para o Brasil, a tal ponto que havia na altura quem protestasse que Portugal, para todos os efeitos, fora convertido numa colónia brasileira. Desde 1814, mas sobretudo a partir de 1817, fermentavam no Brasil aspirações independentistas. Até que em 1821 rebentou uma revolução militar-popular apadrinhada por D. Pedro IV, o sucessor à Coroa, e em breve D. João VI e toda a corte fugiu em sentido inverso para Portugal.
D. João VI governou portanto no Brasil de 1807 a 1821, ou seja, catorze anos, parecendo esquecido do berço originário da monarquia. D. Pedro IV permaneceu como seu regente. Até que em 1822 se dá o famoso grito do Ipiranga: «Fico!», terá gritado D. Pedro IV. O certo é que a partir de 1822 o Brasil se tornou independente de facto. Pouco depois encetaram-se negociações para inventar uma modalidade de o Brasil, embora independente, ficar de algum modo ligado à Coroa portuguesa, para que a ordem dinástica não fosse ofendida.
Em 29 de Agosto de 1825, celebrou-se finalmente um tratado de independência do Brasil. O tratado previa, entre outras coisas, a restituição mútua de bens e presas, mas o mais interessante e significativo é que previa também que o Brasil indemnizasse Portugal no valor de dois milhões de libras esterlinas…
Quanto a reparações estamos conversados. Sem dúvida que é legítima e necessária a devolução de obras de arte importantes impropriamente saqueadas pelas nações coloniais. Porém, e como já se percebeu, sou radicalmente oposta à ideia de pagarmos pelo tráfico de escravos a título de nos redimirmos de pecados que não cometemos. Essa pretensão é um absurdo.