Não me recordo quantas vezes utilizei a frase ‘à política o que é da política e à justiça o que é da justiça’. Mas algumas enquanto deputada, permitindo-me também não ter de comentar casos mediáticos, cujas respostas abriam quase sempre a porta à mais fácil das acusações: querem influenciar a justiça. Acontece que, das entrevistas para a arena parlamentar, se os casos permaneciam nos corredores judiciários, já as leis, os processos, as estruturas e as mais elaboradas teorias da justiça continuavam no campo da responsabilidade política, esmagada entre a vontade de fazer e o medo de não corresponder, sob o olhar de uma opinião pública que apesar de nem sempre esclarecida, acusa, julga e governa com impressionante rapidez.
Claro que em nome do respeito pela independência do poder judiciário e do princípio da separação de poderes, ninguém contesta que deve prevalecer um princípio de cautela nos comentários políticos de casos judiciais. Mas no plano estritamente político, ou seja, da administração e do funcionamento da justiça, é inevitável reconhecer como muitos destes casos têm contribuído para realçar ineficiências do sistema, reais ou percecionadas, constituindo por isso verdadeiras oportunidades para reflexão e ação, naquele que é o seu palco por excelência: o Parlamento.
Não é boa prática legislar ou decidir questões estruturais a reboque de casos concretos. Corre-se seriamente o risco de confundir a parte com o todo e com isto fazer mais mal do que bem. Contudo, quando casos concretos se tornam espelho de falhas que reputamos graves, perturbadoras de um certo sentido de ordem e paz social, não fazer nada e confiar numa espécie de sacrossanta ideia de normal funcionamento do Direito e da Justiça, não é o melhor caminho.
Até porque, neste novo mundo, onde o digital introduziu uma indomável voracidade informativa, as próprias instituições da justiça estão sob fogo cerrado, tantas vezes injustamente responsabilizadas por problemas que não criaram e que, na verdade, não conseguem resolver sozinhas. A partir daqui todos conhecemos o guião. Enquanto uns falam de politização da justiça, outros falam de judicialização da política, pessoalizando críticas, trocando acusações, num ambiente que dificilmente se dispõe a uma reflexão séria e construtiva.
É tempo de parar. E encarar todas estas formas de participação como uma consequência da democracia com a qual as instituições devem saber conviver. No caso das instituições da justiça há que, seguramente, ajustar a forma como comunicam, assumindo com humildade que num Estado de Direito, no estrito respeito pelos seus princípios fundamentais, o escrutínio público é instrumental à proteção da confiança e de um sentido de pertença.
Uma sociedade democraticamente madura, é uma sociedade participada e consciente, onde os cidadãos não podem continuar a ser entendidos como meros objetos do sistema ou espetadores do seu tempo. Cada um de nós tem um papel a desempenhar e alguns de forma qualificada, seja pelas responsabilidades que assumiram no passado, seja pelas que assumem no presente. O Manifesto ‘Por uma Reforma da Justiça’ é um sobressalto cívico de quem tem a consciência plena deste papel, cumprindo com os seus deveres, sem deixar de exigir o que lhe é de direito. Ainda que nem todas as críticas sejam justas, é inevitável reconhecer e aceitar que temos tido falhas graves que não podem permanecer sem resposta. Saibamos por isso dar voz a este manifesto e coletivamente refletir, por entre diferenças, sobre o caminho que queremos. Com responsabilidade e sem culpas. Em nome do Estado de Direito.