Cansados daqueles ditos autores que se movem estrategicamente, atravessando uma liberdade vigiada, autorizada por terceiros ou gerada pelos crescentes efeitos soníferos das suas ‹‹muletas químicas››, resta-nos inverter a almofada e mudar de bordo por baixo dos lençóis, sonhando com imagens mais fidedignas àquela pulsação que mais nos interessa: procurar combater a ideia insuportável de não coincidirmos connosco, erigindo uma total revelia em relação ao real, dialogando uns com os outros, e quiçá nos vejamos devolvidos àquela primeira ilha, servindo-nos uma jangada, com a qual possamos regressar à origem do nosso primeiro interesse pela literatura.
Precisamente num destes dias de tempestade, deu à margem Suicídio de Édouard Levé, pela chancela Edições Cutelo. O habilidoso tradutor, Diogo Paiva, conseguiu que dentro da garrafa coubesse ainda uma nota prévia, situando-nos relativamente ao contexto em que a obra surge no percurso da vida literal e literária do autor. Depois de Ouvres (2002), Autoportrait (2005), e de pelo menos quatro tentativas falhadas de suicídio, o tradutor enquadra este livro na sequência da ‹‹recorrente ideação suicída››, tratando-se, por isso, de ‹‹uma carta testamentária, um texto que é simultaneamente o suicídio do autor e a garantia da sua extensão no tempo››. A 15 de outubro de 2007, dez dias depois de entregue ao editor, aos 42 anos, Édouard cairia junto das folhas de outono em Paris, matando-se. Apesar de sumária, esta nota de Diogo Paiva mostra-se bastante oportuna, e é a partir dela que partimos para o único medo de Levé ao longo do livro, o temor em metamorfosear-se numa ‹‹máquina de visão indiferente ao conteúdo daquilo para o que olha››. As restantes páginas, dedicam-se à lenta expansão da afirmação lúcida desse suicídio. Servindo-nos do poema, naquilo que tem de mais universal e amplo, e por isso próximo da definição de qualquer gesto literário verdadeiramente desenquadrado e irreverente, ‹‹parece, pois, evidente que o poema é menos um esclarecimento do que uma revelação, esse instante em que a imagem nos coloca perante uma totalidade, (…) porque é sobretudo a criação de um corpo resistente, não evanescente, que é a imagem ou a figura total.›› (António Ramos Rosa).
A revelação do suicídio é a figura total do livro. Ele conta-nos a história de um jovem de 25 anos que escolhe suicidar-se na cave de sua casa com uma arma de fogo, apontando-a à cabeça, num sábado canicular do mês de Agosto. Enquanto a mulher o espera no jardim, pensando que ele se ausentara por se ter esquecido de uma raquete de ténis, ouve o disparo, grita pelo seu nome – que nunca nos é revelado – e dirige-se à cave, onde o encontra ‹‹como um jovem tenista que descansa depois de um jogo no relvado››. Estudante de economia, tal como Levé, filho de uma professora de literatura e de um pai que a deixara ao encargo de três filhos, encontramos alguém para quem a poesia era o rock de porta trancada, meia dúzia de amigos que desvanecem ao final da noite atrás do fumo do tabaco americano e a tentativa de libertação do efeito despersonalizante dos antidepressivos. Tudo nos é narrado a partir das palavras de um suposto amigo do morto, dirigindo-se ao mesmo na segunda pessoa – tom raro, à exceção da poesia – explicando-lhe: ‹‹começa-se por contar a tua morte, antes de voltar atrás no tempo para a explicar››. Temos assim que a carta de suicídio de Levé nos é revelada enquanto ‹‹carta a um suicidado››, contornando o tempo, enquanto o narrador se dedica a reviver a vida passada do amigo morto. Ele parte de uma escrita topográfica, despretensiosa e tremendamente poética na sua simplicidade obscura, direta e calorosa, como quem tem a vocação de falar poesia e de escrever com a mesma velocidade que a memória dita: a concordância entre o ritmo cardíaco e o nascimento das imagens. Chega-nos uma mente pulsada pela recolha dos fragmentos de vida de um morto, dispondo-os de um modo disperso, sem se encostarem uns nos outros, traçando o que poderá ter sido um arquipélago de vidas passadas onde o rigor da cronologia pouco importa. Da amizade e profunda intimidade que resulta da sua eloquência, e também do sentido unidirecional entre os dois amigos, constatamos que o terceiro elemento, nós, leitores, importamos ainda menos. Lembra-nos Montaigne: ‹‹Se me intimam, sinto que só o posso exprimir respondendo: Porque era ele, porque era eu››.
Desde os seus primeiros trabalhos fotográficos, Homonymes (1999), Pornographie (2002) até Amérique (2006), assim como na sua estreia literária Ouvres (2002), Edouard Levé foi procurando trazer-se a um inventário complexo, catalogando propostas para obras de arte que nunca existiram, fotografando indivíduos que partilham os mesmos nomes de escritores de alto gabarito ou cidades e aldeias americanas com nomes originários de outras cidades do resto do mundo. Posicionado dentro de uma lógica anti-espetacular, que em nada se aproxima aos métodos de representação desenvolvidos e mais tarde impingidos pela sociedade capitalista, compromete-se desde o princípio com a alteridade. Ele parecia obcecado com o ofício de resignificar conceitos e nomes por todos pré-concebidos. Do lado mais vigoroso da sombra, ia-se servindo de um outro dicionário para compor a sua enciclopédia: ‹‹Lias dicionários como outros liam romances. Cada entrada é um personagem, dizias, que se pode reencontrar ao longo da leitura aleatória. As acções, múltiplas, constroem-se ao longo da leitura aleatória. Conforme a ordem, a história muda. Um dicionário parece-se mais com o mundo do que um romance, pois o mundo não é uma sucessão coerente de ações, mas uma constelação de coisas adaptadas. Observamo-lo, objetos sem qualquer relação reunem-se, e a proximidade geográfica dá-lhes um sentido. Se os acontecimentos se sucedem, acreditamos que é uma história. Mas num dicionário, o tempo não existe: ABC não é mais nem menos cronológico do que BCA. Descrever a tua vida por ordem seria absurdo: lembro-me de ti ao calhas. O meu cérebro ressuscita-te através de detalhes aleatórios, como se vasculham berlindes num saco››. Um pouco como acontece na montagem do argumento de Anatomia de uma Queda, pelas mãos de Justine Triet e Arthur Harari, em que, desobstruídos o romance, a psicologia e a memória, mas também o diálogo inteligente, o calculismo do processo jurídico e o desespero, nos convertemos simultaneamente a participantes do arco de investigação do suicídio e a agentes invasores da intimidade dos personagens, penetrando nas suas dúvidas, discussões conjugais, acusações e decisões finais. Torna-se interessante o cruzamento entre uma série de questões do narrador de Suicídio e o lugar da constante desconsideração e suspeição no desenvolvimento do processo investigatório do crime em Anatomia de uma Queda, oferecendo-nos Levé aquilo que poderia ser uma das múltiplas sinopses para o filme: ‹‹Quem levou o corpo? Os bombeiros, a polícia? Um médico-legista tê-lo-á autopsiado, tendo em conta que um suicídio pode ser um assassinato disfarçado? Houve uma investigação? Quem decidiu que esse suicídio o era, e não um crime? Interrogaram a tua mulher? Falaram-lhe com delicadeza ou suspeitaram dela? A dor da suspeição juntou-se à do teu desaparecimento?››. O narrador refere-se ao suicídio do amigo com as mesmas preocupações que teria o cúmplice medroso de um crime e analisa a sua vida passada com o rigor esperado de uma autopsia, mas ‹‹A morte é um país de que não se sabe nada, ninguém de lá voltou para o descrever››, embora as suas palavras nos convençam do contrário.
Suspensas as âncoras que vão tolerando os vícios daqueles que pensam agir segundo uma herança cultural ocidental, replicando-se uns aos outros, aproximamo-nos de Suicídio, onde vemos colmatado o último assento da produção literária: o cruzamento entre a realidade e a ficção, a coincidência entre a vida e a obra, contada a partir de um amigo, que acreditamos representar uma versão alternativa de si mesmo. Há um momento em que nos é contado o dia em que os dois se conhecem: ‹‹A primeira vez que te vi, estavas no quarto. Tinhas dezassete anos. (…) A porta ficava fechada à chave mesmo quando lá estavas. O teu irmão e a tua irmã não se lembram de lá entrar. (…) Não perguntaste quem era. Como adivinhaste que era eu? (…) Ouvias I Talk to the Wind, de King Crimson, e fumavas››. Se analisarmos os primeiros versos da letra da canção: ‹‹Said the straight man to the late man / Where have you been? / I’ve been here and I’ve been there / And I’ve been in between (…) I’m on the outside, looking inside / What do I see? / Much confusion, disillusion / All around me››, a música que marca este encontro, percebemos que tem o papel fundamental de tornar possível a escrita do livro, contendo em si a chave para a personagem do narrador – qualquer coisa de intermédio entre o morto e a fala – e para a mulher do suicidado – que se encontra do lado de fora da casa a olhar para dentro quando se dá o suicídio. Celan poderia chamar-lhe ‹‹elogio da distância›› quando escreve ‹‹Só quando sou falso sou fiel. / Sou tu quando sou eu››, justificando a procura de Levé pela descoincidência entre o suicidado e o suicida. De tal modo investido em si mesmo, sentimo-nos igualmente derrotados, estrangeiros ao ato de leitura, visto que ‹‹Tudo o que o rodeia não fala senão dele››. Também nos são úteis os contributos de Maria Filomena Molder para a construção deste binómio eu, eu-outro: ‹‹Reduzir o pensamento a uma voz que nos é estrangeira, uma variação, um grito do animal. Duas vozes estrangeiras que partilham um mesmo corpo, suspendendo qualquer esforço de traduzir, como na descida do Espírito Santo sobre cada um dos Apóstolos no dia de Pentecostes: cada um falando a sua língua e cada um compreendendo a língua de cada outro››. E, da mesma maneira que admitimos que duas vozes estrangeiras possam partilhar o mesmo corpo, também nos será possível aferir que dois corpos estrangeiros partilhem a mesma voz, acusa o narrador: ‹‹Mais do que uma vez, bastou que alguém possuísse as tuas palavras para que passasses a gostar delas. Anotaste aquilo que te repetiam. Eras duplamente autor desse texto que escrevias››. Trata-se de mais um autor obscuro. E continua Molder: ‹‹Obscuro é o poeta que, não alterando a ordem sintática, obedecendo com aparente mansidão às regras tradicionais da pontuação e da composição, atendo-se modestamente aos usos comuns das palavras que todos podem entender, introduz uma perturbação quase insuportável, porque a estranheza do que ele está a comunicar, acomodando-se aos moldes onde foi vertida – as palavras mais habituais, a composição mais tranquilizante – transforma-os em carne viva, em fractura exposta››.
Repartido o binómio e compondo um tríptico, juntamos Nuno dos Santos Sousa à comunhão, a propósito de um outro suicida, Fernando Madureira, com a distinção entre morte literal e morte literária. Tanto para o jogador de futebol como para o tenista francês, a morte literária pode ser lida enquanto morte lateral, uma vez que ambos constroem a sua vida como quem cedo aprendeu a despedir-se: “Entra o mundo, saio eu” – dir-nos-iam ainda lúcidos, daí a necessidade de, tal como com Florêncio de Acidente Ocidental, Levé nos dar a ler Suicídio, narrado a partir de um eu-outro, expurgando as dores e os pus como se, para além do primeiro, incorporasse um segundo indivíduo. Assim, temos de um lado o suicidado, imagem que conduz o livro, e do outro a sua tendência homicida, tom que conduz o narrador, ou não fossem os suicidas ‹‹homicidas tímidos››, palavras encontradas no diário de Cesare Pavese dez dias antes do seu suicídio. O caso do nosso francês foi mais premeditado, livrando-se delas os mesmos dez dias antes, mas confiando-as ao prelo do editor Paul Otchakovsky-Laurens das Éditions P.O.L. ‹‹Não querias que ficasse sozinho durante dias a decompor-se e que o encontrassem apodrecido, como o de um solitário esquecido. Exerceste uma violência sobre o teu corpo vivo, mas não querias que, morto, o encontrassem vítima de outras degradações além das que lhe infligiras. Fizeste com que o teu corpo aparecesse à tua mulher e àqueles que o levariam tal como o tinhas previsto››, diz o eu-outro enquanto o corpo do morto arrefece, cabendo-nos a nós, vivos, vesti-lo com a obra que nos é deixada e que comprova o quão deliberada foi a substituição de um pelo outro. ‹‹Usufruo, no teu lugar, daquilo que já não conheces. Morto, tornas-me mais vivo››, reitera o eu-outro enquanto parte viva do morto, defendendo a obra: “Morto, tornas-me mais viva”. ‹‹Agora sabes mais do que eu sobre a morte››, sussurra ironicamente a criação, despedindo-se, ultrapassando a 180 km/h o criador.
Terá sido este o momento em que a evidência de um suicídio indeclinável passou a servir de ponto de partida para imprimir movimento nesta autópsia literária? Ou terá sido antes a aproximação anelante de uma obra desde sempre em apneia, implicada até ao último estertor com coragem e coerência, investida nesse suicídio lateralmente assistido, a razão que conduziu à sua morte literal? O próprio narrador sublinha esta perturbação com um tom provocativo, arriscando uma resposta velada com um ponto de interrogação: ‹‹É curioso que, amando os começos, te tenhas suicidado: o suicídio é um fim. Julgavas que era um começo?››. Se o motor do suicídio avança à medida que nos vemos impotentemente embrutecidos pela vida, aqui Levé revela ter sido ainda um morto funcional, capaz de se livrar desta ‹‹gestação obscura›› (António Ramos Rosa) que diariamente mastiga o mundo, condenando-a e reconfigurando-lhe a ordem, impedindo que a mesma dite as horas de partida e as horas de chegada: ‹‹O sol, o calor e a luz que tornavam aprazíveis as coisas em teu redor surgiam-te como convites a sair, perturbando a tua solidão, forçando-te à alegria. (…) A repulsa que se apoderava então de ti não vinha da rejeição que terias sentido pela pessoa atenciosa, nem da natureza dos objectos de alegria que te tivesse mostrado, mas de a vontade de viver não poder ser-te ditada. Não conseguias ser feliz sob comando, quer a ordem te fosse dada por outra pessoa quer por ti próprio››.
Não se trata de um ensaio geral para o suicídio, estamos já diante do seu gesto inaugural, como quem se senta para limpar a futura arma do crime, embalando-a de antemão; ou como quando o concertino se levanta diante do público, erguendo o primeiro violino, suspendendo a primeira nota, aquela que sabemos conservar em si toda a origem da música, toda a gravidade da peça, num compasso de espera para que os restantes elementos da orquestra se afinem em perfeita consonância. Ele, saído da sua potência individual, ditando como soará a peça, com uma arma atrás das costas, e nós, do lado de cá do túmulo, assistindo à devoração do fruto, dispostos a levar com as pevides que ele nos lança da sua condição. Soa primeiro o gatilho. Avança sobre nós o silêncio e a vertigem. Entram depois os tercetos: ‹‹O solo atrai-me / O quarteto retém-me / A sinfonia afasta-me (…) O ritmo arrasta-me / A melodia encanta-me / A harmonia perturba-me (…) A primeira vez tenta-me / As seguintes habituam-me / A última ensombra-me (…) A felicidade precede-me / A tristeza segue-me / A morte espera-me››. Sai furada a peça, e ecoa ainda Levé, sorrindo e arreganhando os dentes, acariciando o abismo: ‹‹Tu partiste em plena vitalidade. Jovem, vivo, são. A tua morte foi a morte da vida. Agrada-me, ainda assim, acreditar que encarnas o contrário: a vida da morte. Não é claro para mim de que forma sobrevives ao teu suicídio, mas o teu desaparecimento é tão inadmissível que com ele origina-se esta loucura: acreditar na tua eternidade››.