Dominique Claude Rocheteau: chamaram-lhe o Anjo Verde quando, ainda rapazinho, fez parte daquela equipa do Saint-Étienne que jogou a final da Taça dos Campeões contra o Bayern de Munique. Vi-o jogar tantas e tantas vezes, na televisão, depois também ao vivo, e conheci-o num campo de futebol, em Issy-les-Molineaux, quando A Bola com Eusébio e Humberto Coelho e um conjuntos de jornalistas e camaradas que marcaram uma época da Travessa da Queimada defrontou o l’Équipe com Michel Platini e, precisamente, Dominique. Depois houve mais dois jogos, em Lisboa, um na Luz e outro no Estádio Nacional. Rocheteau sempre foi aquilo que os franceses chamam de ‘un gentil garçon’. Platoche, por seu lado, era e continua a ser ‘un vieux blagueur’, ou um ‘chenapan’, se preferirem. Com o primeiro perdi o contacto. Com o segundo, ódio de estimação de tantos portugueses, vou mantendo uma amizade saudável e brincalhona.
Em 1989, o Anjo Verde despediu-se do futebol muito pouco à francesa: uma festa de três dias e três noites em Paris, hotéis cheios de convidados, um jogo de velhas e novas estrelas. A grande figura do acontecimento foi Roger Milla, o camaronês que acordava a cantar e adormecia a dançar, fossem que horas fossem. Seu companheiro de quarto, o argentino Alberto Márcico, espantava-se: «Quando acordei na primeira manhã pensei que estava a dar em maluco – olhei para a banheira e vi aquela figura negra a bailar debaixo do chuveiro como se estivesse numa discoteca. Percebi que não iam ser dias sossegados». Nessa altura, Roger cumpria a sua última época pelo Montpellier e estava decidido a reformar-se. Morrera-lhe a mãe, que ele adorava, e a mulher ficara grávida, estava na altura de mudar algo na sua vida, afinal já estava com 37 anos e apesar de festeiro não era nenhuma criança. Exilou-se. Foi jogar para a Jeunesse Sportive Saint-Pierroise, da ilha da Reunião, perdida no Oceano Índico, a leste de Madagáscar, basicamento onde Judas teria perdido as botas se tivesse tido a decência de as usar. No ano seguinte, Paul Barthélemy Biya’a Bi Mvondo, Presidente dos Camarões e seu amigo de infância, moveu todos os cordelinhos que estavam ao seu alcance, e eram muitos, para o enfiar entre os convocados do russo Valeriy Nepomnyashchiy que comandou a selecção do país no Mundial de 1990, em Itália. O resto é história por demais conhecida. Quem consegue lembrar-se da forma como Milla enganou o enlouquecido Higuita num jogo que marcou o apuramento para os quartos-de-final e comemorou junto à bandeirola de canto com um balancear de ancas capaz de fazer inveja a Josephine Baker, sabe do que estou a falar.
Milla passou definitivamente a fazer parte não apenas da história do futebol como, até, do anedotário do futebol. Quatro anos depois, com 42 anos e 39 dias, fez um golo inolvidável contra a Rússia. Valeu-lhe de pouco, porque os Camarões foram goleados por 6-1 e, ainda por cima, Oleg Salenko assinou cinco golos só à sua conta. Nesse tempo, Roger confessara numa entrevista que, para se manter operacional, deixara de comer carne. Como pilhéria, um jornal inglês tratou de achincalhar a alcunha dos camaroneses: Os Leões Indomáveis, como gostam de se apelidar, passaram a ser Os Leões Vegetarianos.
Não sei se alguém esqueceu verdadeiramente Roger Milla, e se o fez cometeu uma injustiça ao futebol mais selvagem e mais autêntico que passou por todos os Mundiais. Sei que Yannick Noah, tenista vencedor de Roland Garros, fez os possíveis para o manter inesquecível quando, um ano após o Campeonato do Mundo de Itália, publicou um álbum de música no qual_Saga África era a canção ‘piéce de résistence’. Convidou Roger para se juntar a ele, embora a voz do camaronês fosse do timbre da de um devorador de bagaços. «François Omanbiyik amortit et glisse un zolo/Deux zolos et passera Milla/Milla dribble la balle, un dribble/Qui sort des laboratoires/Foot balistiques d’Etudi/L’affaire est grave, il tire au goal/Il y est!».
Quantos jogadores ficaram eternizados em canções?, eis uma pergunta à qual não sei responder embora já tenha trazido um bom ror deles para estas páginas. Com Milla, eternizar não será o mais correcto dos termos pois Noah como cantor ficou quase ao mesmo nível que a princesa Stephanie do Mónaco com o seu Irristible. Mas cantou futebol tal como Milla dançou futebol. «Hey là, le type-là/Oui oui, petit blanc/Paris-Yaoundé/Connexion mais venez/Allons ambiancer/Ambiance soukouss/Ambiance makossa/Ou l’ambiance du bikutsi/Ambiance assiko/Mouvement partout…».
Para a minha memória fica sempre Roger Milla dançando como um garoto em redor de uma bandeirola de campo. Bendita imagem que o tempo não apaga.
afonso.melo@nascerdosol.pt