Sair do quintal para ocupar o continente

Onde se fala desse tempo quase pré-histórico em que a então Liga das Nações se jogava em eliminatórias como uma simples Taça e só os semi-finalistas tinham direito a uma fase final, e da primeira de todas as presenças portuguesas, com um triunfo sobre a RDA e um descalabro face à Jugoslávia.

A Taça da Europa das Nações, mais tarde apelidada de Campeonato da Europa teve a sua primeira edição em França, naturalmente (não tivesse a prova sido criada por um francês, Henri Delaunay), entre 6 e 10 de Julho. Quatro semi-finalistas, URSS, Jugoslávia, Checoslováquia e França, classificadas por esta ordem. Ninguém era apurado oficialmente, nem mesmo o organizador do torneio que teve de passar pelas eliminatórias, em forma de Taça, casa e fora. A URSS despachou a Checoslováquia por 3-0, os da casa foram eliminados pela Jugoslávia: 4-5. Final no Parque dos Príncipes: URSS, 2 – Jugoslávia, 1 (após prolongamento); terceiro e quarto lugares decididos no Velódromo de Marselha: Checoslováquia, 2 – França, 0. E assim, o enorme Yashin, foi o primeiro capitão a erguer aquela Taça Magnífica que tantos anos fugiu a Portugal. Daí até 1976, o Europeu, como agora se diz, continuou a ser uma espécie de competição de quintal com uma fase final resumida aos que chegavam às meias finais. Durante essa fase tivemos a vitória da Espanha, em Espanha (1964), da Itália, em Itália (1968), da RFA, na Bélgica (1972) e da Checoslováquia, na Jugoslávia (1976). Depois tudo mudou. Mas não deixemos que este texto resvale para um meio bacoco registar de vencedores e finalistas e voltemos atrás para recordar como foi a primeira presença de Portugal no primeira Taça da Europa das Nações.

Acrescente-se o pormenor que, logo de início, o desinteresse pelo torneio foi de tal ordem que as quatro seleções britânicas, a Alemanha Ocidental, a Itália, a Bélgica, a Holanda, a Suíça, a Suécia, a Finlândia e o Luxemburgo se recusaram a participar. A Portugal ordenara o sorteio que defrontasse, na primeira eliminatória, um adversário desconhecido, vindo do leste da Europa com o qual, como se adivinha pela situação política, as nossas relações estavam reduzidas a zero. Béla Guttmann, o húngaro, convidado a treinar a equipa por via do seu maior conhecimento do futebol de Leste nos jogos contra a Alemanha Oriental, acusava a seleção pelos jogos de preparação que observara frente a Suíça e Suécia: «O individualismo foi a ruína!». E Otto Bumbel, o consagrado técnico brasileiro da Académica, numa muito objetiva série de artigos que a imprensa trouxe à estampa, sublinhava: «O futebol português é paupérrimo de equilíbrio físico-técnico e mal servido de elementos para algumas posições-chave da selecção nacional». Nada parecia francamente positivo.

Mas, surpreendentemente, Portugal excedeu-se. Sem Hernâni, com problemas físicos, e com Matateu em grande – o contingente de soldados russos que assistiu ao encontro chegou ao ponto de gritar o seu nome em coro –, os portugueses dominaram as operações de forma soberana, marcando um golo logo aos 12 minutos, num lance rendilhado: Carlos Duarte, na direita, centrou atrasado para Coluna que passou por dois adversários e ficou frente a Spickenagel mas preferiu oferecer a oportunidade a Matateu que ainda teve o requinte de driblar um defesa que vinha ao seu encontro antes de atirar para a baliza. A reação germânica não teve expressão avassaladora, mas Acúrsio ainda foi obrigado a algumas defesas de aparato antes que voltássemos a tomar conta do jogo e resolvêssemos a questão com um golo de Coluna a meio do segundo tempo.

O final da partida, já em «baile», faria com que Portugal desperdiçasse mais duas ou três boas ocasiões para marcar. A equipa alinhara em WM: Acúrsio – Virgílio e Angelo – Fernando Mendes, Figueiredo e Vicente – Teixeira e Coluna – Carlos Duarte, Matateu e Cavém, e já ninguém duvidava que iríamos jogar os quartos-de-final contra a Jugoslávia que eliminara a Bulgária (2-0 e 1-1). 

Nas Antas, no jogo em que Virgílio cumpriu a sua 34ª internacionalização, batendo o recorde que era então de Travassos, a vitória repetiu-se, desta vez por 3-2. Como é natural num jogo em que uma equipa se sente à vontade e a outra quer apagar erros recentes, as posições inverteram-se. Portugal foi individualista e o conjunto perdeu-se perante o terreno molhado e a força física alemã. José Maria Antunes limitou-se a uma alteração: a de Vicente por Alfredo.

Os golos foram disfarçando uma superioridade discutida palmo a palmo. O primeiro seria de Coluna, de cabeça, em voo, sobre o intervalo. O segundo, do mesmo Coluna, aos 16 minutos da segunda parte, isto é, treze minutos após o empate de Vogt: desta vez um remate forte, de baixo para cima, à boca da baliza, na sequência de um canto. Cavém faria o 3-1 com um pontapé colocado aos 69 minutos, para Kohler reduzir três minutos depois. Nem o selecionador nem o treinador escondiam a sua alegria. E prometiam êxitos. Sonhos que uma derrota vibrante (3-5) em Paris, face à França, no final do ano, não foi capaz de ensombrar.

A desilusão

Na seleção nacional do Dr. José Maria Antunes, que prepara os dois jogos com a Jugoslávia para os quartos-de-final da Taça das Nações Europeias, algo de francamente novo: em vésperas da deslocação a Ludwigshafen, para um jogo «amigável» com a Alemanha Ocidental, foram chamados pela primeira vez dois jogadores não nascidos em Portugal ou nas colónias. Eram eles David Júlio e Lúcio, ambos do Sporting. David Júlio nascera na África do Sul e era filho de pai moçambicano; Lúcio nascera no Brasil, mas era filho de pais portugueses. No dia da sua primeira presença no Estádio Nacional, para os treinos com Béla Guttmann, o selecionador José Maria Antunes teria umas palavras especiais: «Agora, para vocês, trata-se de disputarem mais do que um simples desafio de futebol».

Portugal voltou a ganhar (2-1), mas não deixou em campo grandes motivos para crer verdadeiramente que aguentaria a vantagem no jogo da segunda «mão». Foi uma seleção surpreendente, aquela que entrou em campo. Tão surpreendente que seria recebida com estupefação pelo público do Jamor que acompanhou a sua subida ao relvado com um silêncio reprovador.

José Maria Antunes castigara os «piegas», como lhes chamou, José Águas e José Augusto, de Ludwigshafen com a exclusão. O espetáculo voltou a ser bisonho: Santana e Matateu levaram Portugal à vantagem relativamente confortável de dois golos mas, a sete minutos do final, Sekuralac deu a Kostic a hipótese de reduzir para 1-2. E a discussão instalou-se: considerava-se que tirar os jogadores da equipa pelo que eles não haviam feito na Alemanha penalizava mais a equipa do que os jogadores. E que, a partir do momento em que eles não tinham sido imediatamente dispensados da convocatória na sua chegada a Lisboa, o selecionador e o treinador tinham caído num equívoco, enganando os adeptos e enganando-se a si próprios.

José Maria Antunes e Béla Guttmann mantiveram a sua teimosia em Belgrado. Hernâni e Santana, que tinham substituído José Águas e José Augusto, voltaram a ser titulares. O benfiquista Mário João estreou-se no lugar do seu companheiro de clube Ângelo. Vinte minutos diabólicos dos jugoslavos deitaram por terra qualquer ténue esperança portuguesa. Durante a primeira parte ainda fora possível disfarçar a superioridade do adversário. Sekularac fizera o 1-0, mas Cavém empatara de cabeça, na sequência de um canto. Um «frango» de Acúrsio, que não susteve uma bola chutada por Cebinac da linha de cabeceira, levou a Jugoslávia em vantagem para o intervalo. No segundo tempo, Kostic, Galic e novamente Kostic selaram uma vitória gorda (5-1). Portugal perdia o jogo e a cabeça: alguns jogadores entraram em lances de dureza excessiva e injustificável e saíram de campo sob um coro estridente de assobios. Depois de três vitórias consecutivas, a seleção deixava a Taça das Nações pela porta pequena.

Foi preciso esperar por 2016 para pormos, finalmente a mão no troféu: 56 anos! Até lá vimos o torneio crescer, primeiro para uma fase final de 8, depois 16, finalmente 24. Estivemos presentes em 1984 e fomos às meias-finais, em 1996 (quartos de final), 2000 (meias-finais), 2004 (final), 2008 (quartos), 2012 (meias), 2016 (vencedores), 2020 (quartos). Tornámo-nos membros de pleno de uma elite que é dominada pela Alemanha (3 títulos – 1972, 1980, 1996), Espanha (3 títulos – 1964, 2008, 2021), e vivemos ainda a esperança de nova conquista. Para quando? Talvez nem os deuses do futebol saibam.