Os antigos gregos pensaram em quase tudo, criando infindos mitos povoados por divindades adaptadas a todas as situações da existência humana. No caso das artes, literatura e ciência, procuravam inspiração nas nove Musas, filhas de Zeus e Mnemósine. À luz dos dias atuais, em que a gastronomia combina técnica, criatividade e expressão e se entrelaça com áreas científicas como a química, a microbiologia e a física, poderíamos conjeturar que alguma das nove Musas teria igualmente a missão de inspirar na arte culinária. Contudo, não era esse o caso.
No diálogo Górgias (380 a.C.), Sócrates compara desfavoravelmente a culinária à medicina, esta sim uma verdadeira arte. Afirma que a primeira, exclusivamente dedicada ao culto do prazer, sem investigar a natureza ou a causa deste e desprovida de qualquer esforço de classificação, «preserva meramente pela experiência e rotina uma memória do que geralmente acontece». Este entendimento, obviamente, mudaria, especialmente com A Fisiologia do Gosto, do francês Brillat-Savarin, obra publicada em 1825 (à qual já me referi aqui), que trouxe a arte de cozinhar e comer para a contemporaneidade.
Da já considerável lista de obras cinematográficas inspiradas nos prazeres da cozinha e da mesa – na qual não incluo A Grande Farra (1973) – sobressaem títulos como A Festa de Babette (1987), Como Água para Chocolate (1992), Vatel (2000), Julie e Julia (2009), Os Sabores do Palácio (2012), A Viagem dos Cem Passos (2014) e – porque não? – Ratatouille (2007). A lista acaba de ser enriquecida com O Sabor da Vida (2023), do franco-vietnamita Tran Anh Hung, a quem já se devia O Odor da Papaia Verde (1993). Inspirado nalgumas páginas do romance A Vida e a Paixão de Dodin-Bouffant, Gourmet (1924) do suíço Marcel Rouff, o filme conta com as interpretações de Juliette Binoche – a atriz de Chocolate (2000) –, mais tocante do que nunca, e de um convincente Benoît Magimel. Com uma fotografia frequentemente evocativa do Impressionismo (repare-se na cena do banho ou no almoço no campo), contemporâneo da época retratada, o filme é pródigo em citações famosas, como, por exemplo, «A descoberta de um novo prato faz mais pela felicidade da raça humana do que a descoberta de uma estrela», da autoria de Brillat-Savarin.
Advirto que o que se segue pode conter spoilers. Os primeiros 30 minutos, quase sem palavras, mostram os preparativos de um (grande) jantar, desde a horta até à mesa. Ao contrário do que é habitual acontecer no cinema, os alimentos são reais – num filme como este, não havia alternativa. O momento alto, como em qualquer refeição, é a sobremesa: uma Omelete Norueguesa! Trata-se de um bolo do tipo génoise recheado de gelado, que, coberto de merengue, vai ao forno para dourar por uns instantes. Segundo se conta, foi durante a Exposição Universal de Paris de 1867 que o chef do Grand Hôtel de Paris, decidido a criar um prato ‘científico’, recorreu à baixa condutibilidade térmica da clara de ovo batida, supostamente descoberta por Benjamin Thompson (1753-1814), físico e inventor britânico de origem norte-americana e um dos pioneiros da termodinâmica. O nome da sobremesa terá resultado de um equívoco: Balzac (era este o nome do chef) achava que Thompson vivera na Noruega. Outro nome por que a sobremesa é conhecida é ‘Baked Alaska’. Segundo algumas fontes, terá sido dado pelo chef Antoine Alciatore de Nova Orleães, a fim de comemorar a aquisição do Alasca pelos Estados Unidos em 1867; segundo outras, terá sido atribuído em 1876 no Delmonico’s, um famoso restaurante nova-iorquino.
Em 1969, na Royal Institution de Londres – fundada em 1799 por Benjamin Thompson – Nicholas Kurti (1908-1998), um húngaro-britânico especialista em física das temperaturas ultra-baixas e entusiasta das abordagens científicas à culinária (a ele se deve a designação de ‘gastronomia molecular’) proferiu a palestra ‘O Físico na Cozinha’. Enquanto preparava um ‘Soufflé à la Chartreuse’ e recorria a sensores de temperatura e registadores gráficos para mostrar ao público como o mesmo evoluía, terá afirmado: «É um triste reflexo da nossa civilização que, apesar de podermos e conseguirmos medir a temperatura na atmosfera de Vénus, não sabemos o que se passa dentro dos nossos soufflés». Durante a sessão, Kurti surpreendeu ainda a audiência ao usar o recém-inventado forno micro-ondas para confecionar um ‘Baked Alaska invertido’, conhecido por ‘Frozen Florida’: um invólucro de merengue congelado repleto de licor aquecido.