Entre argentinos e uruguaios não há derrota sem vingança. E cada duelo merece resposta adequada o mais depressa possível. Foi assim em 1924, quando o Uruguai venceu o torneio de futebol dos Jogos Olímpicos no Estádio de Colombes, em Paris, batendo a Suíça por 3-0. Dia 9 de Junho. A Celeste Olímpica orgulhosa das suas medalhas de ouro, regressou a casa no meio de uma festa vibrante. Os jogadores da Albi-Celeste (que não foi olímpica porque os seus dirigentes decidiram não entrar na competição que, na realidade, na altura era o verdadeiro Campeonato do Mundo) alimentavam intimamente a revolta contra os seus vizinhos. E assim, no dia 28 de setembro, ambos estavam frente a frente, para que os argentinos pudessem provar que não havia na América do_Sul ninguém que pudesse ser melhor do que eles. A desforra está no sangue daqueles que vivem nas margens do Rio de La Plata. Como dois cowboys num duelo ao anoitecer (de preferência com música de fundo de Ennio Morricone), sacaram das armas de que dispunham no velho Estádio de Sportivo Barracas, entretanto vítima do camartelo para dar lugar a uma larga praça arborizada na Avenida Vélez Sársfield, em Buenos Aires. A raiva contida argentina chocava com a sensação de superioridade uruguaia. Talvez por isso não seja de admirar que o tremendo encontro de ‘revancha’ tenha durado apenas quatro minutos. Horacio Martínez Seeber, um radioaficcionado, e Atilio Casime, chefe da secção desportiva do mítico diário Crítica, estavam prontos para chegar aos ouvidos de milhares de argentinos com a primeira transmissão em direto de um jogo de futebol realizada no país. O momento parecia solene, mas os espetadores fanatizados até aos interstícios dos seus cérebros drogados pela ideia da vindita estiveram-se simplesmente borrifando para a solenidade. Numa mole humana impulsionada apenas pelo ódio aos vizinhos platenses invadiram o campo e obrigaram os jogadores das duas equipas a esconderem-se como puderam. A carga de cavalaria veio depois. Dispersou a maralha mas não apaziguou as hostes. A refrega estava para durar.
O bom senso não teve lugar nesse tempo, cem anos agora decorridos. Teimosos, os argentinos não abandonaram a ideia da desforra e o jogo foi remarcado para o dia 2 de Outubro, apenas quatro dias mais tarde. Era brincar com o fogo, mas há lá fogo que arda mais do que a fogueira do orgulho ferido. Horacio e Atílio regressaram ao Sportivo_Barracas com os seus microfones – três, um para cada um e o último para recolher o som do ambiente – com a secreta esperança de que, finalmente, e à sua maneira, iriam fazer parte da história do futebol da Argentina. E fizeram.
Agora, por ordem abstrata, entra em cena Cesáreo Onzari, um canhoto que fez carreira no Sportivo Boedo no Mitre e no Huracán. Era precisamente aqui que eu queria chegar. Estavam dois pares de 52 mil olhos (se excetuarmos os amblíopes) fixados nele no minuto 15 desse jogo extraordinário. Cesáreo pegou na bola para marcar um pontapé de canto do lado esquerdo. Nesse tempo ainda se chamavam aos pontapés de canto livres de canto. Era um castigo para aqueles que despachassem a bola para fora da sua linha de baliza. Pela novas regras da FIFA, livre era livre, e neste caso direto. E Cesáreo foi mais direto do que alguém poderia ter sido – aplicou um pontapé em arco, perfeito e glorioso como um arco-íris, e a bola voou sobre toda a defesa do Uruguai e entrou na baliza no canto mais distante, mesmo naquele ângulo de noventa graus que é formado pela junção da trave e do poste. Nunca se vira nada assim. Os ‘hinchas’ bradaram aos céus e ameaçaram voltar a invadir o campo, desta vez para celebrar a alegria. A cavalaria estava atenta e o jogo pôde prosseguir apesar da fúria à solta. A Argentina venceu por 2-1 e excitou um país inteiro com o convencimento de que, afinal, era superior ao inimigo que lhe fica frente a frente, logo do lado de lá da imensidade do estuário de La Plata. O golo de Cesáreo Onzari passou a ter um nome: golo olímpico. Não vale a pena explicar porquê, pois não? Passaram-se cem anos e por qualquer motivo bacoco há alguém que grita na rádio ou na televisão: «Estivemos à beira de um golo olímpico!» Não, não estiveram. Um golo olímpico é um golo de canto (livre) direto como o daquele inesquecível dia de princípios de Outubro de 1924. Perguntassem, se fossem a tempo, a Horacio Martínez Seeber que o relatou num berro quando percebeu que a sua Argentina estava na estrada de uma vitória emérita. Ou a Atilio Casime que o comentou serenamente perante uma turba ululante que não desistia de invadir o campo. Dona Celeste Olímpica acabara por levar uma facada pelas costas…