A China levantou as barreiras fronteiriças para deixar passar uma caravana de luxo, composta por 77 veículos clássicos, que vai atravessar nove países e a maior massa terrestre do mundo. A oitava edição do Peking to Paris Motor Challenge é organizada pelo grupo britânico Endurance Rally Association (ERA), começou em Pequim, a 18 maio, e termina em Paris, a 23 de junho, depois de percorridas as estradas utilizadas na primeira edição, em 1907. Os participantes vão atravessar a China, Cazaquistão, Azerbaijão, Geórgia, Turquia, Grécia, Itália, San Marino e França. Enfrentam percursos remotos de deserto, floresta e montanha, e vão realizar setores seletivos feitos ao cronómetro. Este rali histórico tem uma média diária superior a 450 quilómetros, o que coloca carros e pilotos no limite da resistência. As equipas vão ser testadas ao máximo e é de esperar que algumas máquinas não aguentem a dureza da prova e se desfaçam ao longo do percurso.
A edição de 2024 é fiel ao espírito que levou ao aparecimento da prova há 117 anos e o percurso é praticamente igual ao da primeira edição, com exceção da ausência da Rússia. A prova começou junto à Grande Muralha da China, entra pelos desertos da China e Mongólia e segue para o interior do Cazaquistão – nessa fase os participantes vão passar muitas noites em tendas. Depois da travessia do Mar Cáspio até ao Azerbaijão, seguem-se as duras e difíceis estradas da Turquia, Grécia e, finalmente, os Alpes franceses.
Carros únicos
Participam nesta aventura veículos anteriores a 1976, alguns são verdadeiras obras de arte. O American LaFrance Type 10 (1914) é o carro mais antigo em prova, mas há outros modelos bastante interessantes: o Cadillac 314 Racer (1926), Ford A (1928), Bentley 4 1/2 Le Mans (1928), Buick Doctor’s Coupe (1929), Lagonda LG 45 Touring (1936), Jaguar XK 120 (1953), Porsche 356 C (1964), Rolls Royce Silver Shadow (1968), Ford Escort MK1 (1970), Datsun 240 Z (1971), Citroen DS (1973) e Porsche 911 Carrera (1973), que é o automóvel mais recente em prova.
As dificuldades começaram ainda em território chinês com alguns problemas de motor devido à utilização de um combustível de má qualidade, mas era o que havia, e com sobreaquecimento devido às elevadas temperaturas sentidas nos primeiros dias. A parte competitiva teve um momento alto com a passagem pelo circuito internacional Ordos, onde se atingiram velocidades elevadas. Os participantes apanharam trilhos arenosos, ravinas profundas e troços acidentados, mais pareciam classificativas do Rali Safari, e a navegação tem sido fundamental. Outro momento alto foi a travessia do Rio Amarelo – é o segundo maior rio da China e o sexto maior do mundo – por uma ponte velha e frágil, sobrecarregada com camiões, que deixou os participantes à beira de um ataque de nervos. Após cinco dias de competição, Lars Rolner (Porsche 911 S) está na frente com 6:01 m de penalização, seguido por Matt Bryson (Leyland P76) com 7:01 m e Katarina Kyvalova (Ford Mustang Fastback) com 7:04 m. Mas esta prova serve também para outros fins. A equipa canadiana Tom e Daniel Kinahan participa com o objetivo de arrecadar um milhão de dólares para a Canadian Men’s Health Foundation, que apoia jovens com problemas de saúde mental.
Longa aventura
A história desta epopeia começou em janeiro de 1907 quando o jornal Le Matin publicou um desafio: «O que temos de provar é que desde que o homem tenha um automóvel, ele pode fazer qualquer coisa e ir a qualquer lugar. Existe alguém que concorde em ir no próximo verão de Pequim a Paris, de carro?» O desafio foi inicialmente aceite por 40 equipas, mas apenas cinco estiveram à partida depois de pagarem uma taxa de inscrição de 2.000 francos (305 euros). A prova constituiu um êxito e permitiu aumentar as vendas e o preço do jornal.
Foi, na verdade, uma aventura pioneira à escala mundial, onde não havia regulamento, os concorrentes podiam escolher o percurso que quisessem, e o vencedor seria aquele que chegasse primeiro a Paris. Às 8h00 da manhã de dia 10 de junho, o príncipe Scipione Borghese, com o Itala 40 cv, Charles Godard, com o Spyker 15 cv, dois De Dion Bouton conduzidos por Collignon e Cormier, e o triciclo Contal 6 cv de Auguste Pons partiram da embaixada francesa em Pequim para esta extraordinária maratona.
Os participantes passaram por estradas não cartografadas, seguiam vagamente as linhas do telégrafo, e perigosas devido aos ladrões locais, e a única assistência que tinham era os postos de abastecimento montados em diferentes pontos do percurso, sendo que a gasolina era transportada por caravanas de camelos. Na zona de deserto, os participantes avançaram apenas 60 quilómetros, mas depois fizeram cerca de 160 quilómetros diários. Atravessaram a Ásia pela Mongólia e, muitas vezes, tiveram de pedir ajuda aos nómadas para conseguirem progredir, uma vez que os veículos não tinham força para avançar devido à lama e às subidas acentuadas, e também porque estavam muito pesados, pois transportavam peças sobressalentes, alimentos, água e combustível. Tiveram também de reconstruir pontes ou construí-las com o auxílio de cordas e canas de bambu. Além dessas dificuldades, tinham ainda de planear o desgaste de pneus e o consumo de óleo.
A 10 de agosto, Scipione Borghese foi o primeiro a chegar a Paris e teve como prémio uma garrafa de champanhe da conceituada marca francesa Mumm. Fez os 14.994 quilómetros em 62 dias. A potência do motor de 7.0 litros e a velocidade do Itala (era o único a atingir os 100 km/h) permitiram ao príncipe italiano ser o mais rápido e dominar a prova desde o início. Pelo caminho, o Itala caiu de uma ponte e capotou, depois ficou preso nos carris do Transiberiano, só a muito custo conseguiu sair, mas também houve tempo para a equipa parar em São Petersburgo, na Rússia, e participar num jantar organizado em sua honra. Mais à frente, as rodas começaram a rachar e Borghese teve de mandar fazer uma roda nova, usando apenas um machado e tábuas de madeira. Mesmo assim, chegou a Paris, à sede do jornal Le Matin, numa altura em que os seus adversários ainda estavam na Rússia. «Fomos os primeiros a chegar, mudando apenas duas rodas», disse o vencedor num telegrama enviado da capital francesa. O carro está exposto no museu automóvel de Turim. O Spyker 15 cv de Charles Goddard foi o segundo a chegar a Paris, mas 20 dias depois do vencedor e com uma equipa diferente, já que Goddard foi preso em Berlim por suspeita de fraude. Já durante a prova teve dificuldades financeiras e foram os seus adversários que cederam gasolina para continuar. Dos cinco participantes, apenas um ficou pelo caminho. Aguste Pons e Oscar Foucauld foram os únicos desistentes e quase perderam a vida no deserto do Gobi quando o Contal Mototri de três rodas ficou sem combustível – falharam um ponto de abastecimento – e os pilotos sem água. Num momento de desespero, tentaram chegar a pé a Pequim… e foram salvos de uma morte certa por uma tribo mongol, que os reconheceu. Regressaram a Pequim de camelo a tempo de apanharem um barco para França e assistir ao final da prova. De salientar que todas as equipas levavam um jornalista a bordo, e foi assim que as histórias desta incrível aventura iam chegando à imprensa ocidental.