O chumbo de Beethoven

Há quase uma década, uma equipa internacional de investigadores iniciou a análise do ADN de várias mechas de cabelo do compositor (algumas provaram ser fraudulentas).

Ludwig van Beethoven (1770-1827) foi um dos maiores compositores que a humanidade produziu, formando, juntamente com Bach, também alemão, e Mozart, austríaco, o trio da genialidade da música ocidental. A sua surdez (que terá começado ainda na década de 1790), uma vida amorosa complicada e constantes dificuldades económicas levaram-no, por diversas vezes, à depressão, chegando mesmo a ponderar o suicídio. Sofreu também de problemas gastrointestinais recorrentes, teve icterícia e debateu-se com uma doença hepática grave, vindo a morrer aos 56 anos.

Apesar da perda auditiva, que nunca foi total (nos últimos anos ainda conseguia distinguir alguns sons graves e sons agudos repentinos), Beethoven continuou a compor quase até ao fim da vida. Foi, porém, obrigado a parar prematuramente de dar concertos, que eram uma fonte significativa de rendimento. Aquando da estreia da sua última sinfonia, a Nona, a 7 de maio de 1824, no Teatro Kärntnertor, em Viena, foi o maestro daquela instituição, Michael Umlauf, quem assumiu a direção musical. Beethoven, no entanto, manteve-se no palco, perto de Umlauf. Dez anos antes, já fora aquele maestro que dirigira a versão final da única ópera do compositor, Fidelio. Se, no último andamento da Nona Sinfonia, a ‘Ode à Alegria’ (versos de Friedrich Schiller) expressa uma visão idealista da humanidade unida, razão pela qual foi escolhida como hino da União Europeia, Fidelio, um verdadeiro libelo contra a tirania, enaltece os valores da liberdade e da justiça, valores que os tempos atuais mostram não estarem assegurados como julgávamos.

A 6 de maio deste ano – 200 anos menos um dia após a estreia da Nona Sinfonia –, a revista Clinical Chemistry divulgou os resultados das análises químicas efetuadas a duas mechas de cabelo do compositor. Era uma prática comum na sua época as pessoas colecionarem e guardarem madeixas de cabelo de entes queridos ou figuras famosas.

Um fio de cabelo é composto por uma rede de fibras cilíndricas bem compactadas, constituídas por uma família de proteínas designadas por ‘queratina’. As substâncias químicas podem associar-se ao cabelo de forma endógena (quando provêm do próprio corpo) ou exógena (quando provêm de fontes externas, como, por exemplo, produtos de coloração capilar), estabelecendo diversos tipos de ligações com as proteínas e lípidos estruturais também presentes. Em particular, os átomos dos metais pesados, ou melhor, os seus iões (átomos que perderam alguns dos eletrões mais externos) possuem grande afinidade por grupos tiol (um átomo de enxofre ligado a um átomo de hidrogénio), existentes nos resíduos de cisteína, um dos aminoácidos da queratina.

O estudo acima referido, liderado por um investigador da Escola Médica de Harvard, consistiu na análise de cabelos de duas mechas autenticadas pelo próprio compositor, recorrendo a dois métodos diferentes. Ambos revelaram altos níveis de chumbo de origem endógena: 64 vezes superior ao valor máximo considerado aceitável na mecha recolhida entre o final de 1820 e o início de 1827, e 95 vezes superior a esse valor na que o próprio Beethoven entregara ao pianista Anton Halm em abril de 1826. Os autores do estudo observam que tais níveis de chumbo, comummente associados a distúrbios gastrointestinais e renais, bem como à diminuição da audição, não são, apesar de tudo, suficientemente elevados para poderem ter sido a única causa da morte do compositor.

No passado, as principais fontes de exposição a este metal pesado foram o acetato de chumbo, usado como adoçante de vinho – bebida que Beethoven ingeria generosamente –, e recipientes de cerâmica com vidrados contendo o elemento. Existiam também preparados farmacêuticos para tratamento da pneumonia e para punções na região abdominal que o continham.

Há quase uma década, uma equipa internacional de investigadores iniciou a análise do ADN de várias mechas de cabelo do compositor (algumas provaram ser fraudulentas). Os resultados da sequenciação do genoma foram publicados em março de 2023 na Current Biology, mostrando que Beethoven possuía uma predisposição genética para doenças hepáticas. Contudo, não forneceram pistas sobre causas subjacentes à sua surdez ou aos problemas gastrointestinais.

O genoma é público, incentivando mais investigação sobre questões em aberto. O grande compositor desejava que o seu caso clínico fosse estudado e os resultados divulgados. Nas suas palavras, para que «pelo menos tanto quanto possível, o mundo se reconcilie comigo após a minha morte». Lieber Beethoven, o mundo venera-te!

Químico