Quando a Loba guarda o rebanho!

Qualquer cidadão europeu tem a legitimidade para ser Spitzencandidate da sua família política. Todos, menos um, menos uma neste caso concreto: a/o presidente em exercício da Comissão Europeia.

Os Tratados da União Europeia não podiam ser mais transparentes:  

– a Comissão Europeia é a guardiã desses mesmos Tratados;

– o Conselho Europeu, tendo em conta o resultado das eleições para o Parlamento Europeu, indigita por maioria qualificada o candidato/a a presidente da Comissão Europeia, que tem que ser aprovado pelo Parlamento Europeu.

Ou seja, compete à Comissão Europeia a defesa permanente do respeito inviolável do texto e espírito dos Tratados, verificando constantemente que nem os Estados-Membros, nem as Instituições Comunitárias, deturpam, comprometem ou violam as disposições dos Tratados que voluntariamente subscreveram.

Nenhum Estado-Membro foi forçado a aderir, todos solicitaram a sua adesão (e a lista de candidatos continua a aumentar), e as sucessivas revisões dos Tratados tiveram que ser aprovadas por unanimidade pelo Conselho Europeu (onde os Chefes de Estado e Governo representam os Estados) e ratificadas por todos segundo as normas constitucionais de cada Estado, na grande maioria através dos respetivos Parlamentos Nacionais.

Na legislatura e2009-2014, os partidos políticos uropeus (as famílias políticas transnacionais aglutinando os Partidos nacionais segundo a sua afinidade ideológica), impulsionados pelo socialista alemão Martin Schulz, então presidente do Parlamento Europeu, sugeriram que cada partido europeu deveria, previamente, indigitar o seu candidato à Presidência da Comissão. Os eleitores europeus saberiam assim que, ao eleger os seus Eurodeputados, estavam também a eleger, indiretamente, o próximo presidente da Comissão.

Numa primeira fase a ideia foi entusiasticamente apoiada pela 3 principais famílias políticas, a do PPE, dos Socialistas e dos Liberais, já  que representava um avanço substancial no sentido do federalismo europeu, pouco importando que significasse uma violação flagrante dos Tratados. Com o tempo, e por imposição dos media para que pudessem estar presentes nos vários debates europeus, as outras forças que rejeitavam essa indigitação, fossem conservadoras ou comunistas, de extrema direita ou esquerda, foram aderindo ao processo. E assim hoje fala-se naturalmente desses proto-candidatos a presidente da Comissão, designados pelo seu termo alemão, Spitzencandidates.

Quando confrontada com essa flagrante usurpação duma competência exclusiva do Conselho Europeu, a então toda poderosa chanceler Angela Merkel sorriu dizendo «deixemos os Partidos Políticos brincar às indigitações, quando chegar a hora o Conselho escolhe quem quiser». A verdade é que, desde então, o PPE ganhou todas as eleições europeias, e mesmo a Senhora Merkel perdeu no Conselho, uma primeira vez em 2014 quando este, contra o seu voto, escolheu Jean-Claude Juncker (o Spitzencandidate do PPE) para liderar a Comissão, e em 2019 quando votou para que o Spitzencandidate do PPE, mesmo sendo alemão (Manfred Weber) fosse derrotado, porque queria eleger um Socialista (o holandês Frans Timmermans) também ele preterido pelo Conselho, e teve que ficar na caricata situação de se abster já que a candidata indigitada acabou por ser a sua própria ministra da Defesa, Ursula von der Leyen!

Esta longa introdução vem a propósito da visita ontem a Portugal da presidente da Comissão como Spitzencandidate do PPE. Interessante para ela, para tentar cativar o voto de Luís Montenegro no Conselho, mas duvidamos que proveitosa para a Aliança Democrática.

É obvio que Ursula von der Leyen tem toda a legitimidade para querer ser candidata a um segundo mandato. Terá uma opinião positiva do que foi o primeiro. Que, é claro, não é unânime. Porque desagrada desde logo a muitos dos seus correligionários do PPE já que sempre preferiu satisfazer socialistas e liberais, porque pareceu muitas vezes defender mais os interesses norte-americanos que os europeus (numa altura em que receando a não renovação do mandato Europeu ponderava a Secretaria-Geral da OTAN), mesmo com a recusa de ir ao Parlamento Europeu esclarecer a sua intervenção pessoal no negócio das vacinas da covid com a Pfizer (vergonhoso que nem ela foi, nem o Parlamento fez finca pé na sua presença na Comissão eventual criada para o efeito, mas lá está, ser PPE e ter amigos socialistas e liberais sempre ajuda), por ser evidente o double standard com que trata os diferentes Estados-Membros.

Este reportório de flagrante violação do Estado de Direito, do tratamento igualitário entre os Estados-Membros, do dever de total transparência, a que, mais que ninguém, está obrigada, são argumentos altamente negativos mas, ainda assim, o que mais impressiona e inquieta, não é isto!

Qualquer cidadão europeu tem a legitimidade para ser Spitzencandidate da sua família política. Todos, menos um, menos uma neste caso concreto: a/o presidente em exercício da Comissão Europeia. A pessoa que é a responsável suprema por cumprir e fazer cumprir os Tratados Europeus!

São estas hipocrisias, estas valorizações sobrepondo os interesses pessoais à própria lei, que mancham e afastam os cidadãos da política! Teria sido bem mais digno uma declaração de von der Leyen testemunhando a sua disponibilidade para um eventual segundo mandato se tal for a vontade do Conselho Europeu, mas que a sua responsabilidade como máxima Guardiã dos Tratados não lhe permitia personificar a sua flagrante violação!

P.S. E não vale a pena pedir aos Tribunais Europeus que se pronunciem sobre o tema: vindo da Comissão Europeia, inventariam uma interpretação que legitimasse a violação dos Tratados!

Politólogo