Charles Olson no seu livro sobre Melville escreve “Considero o ESPAÇO como o facto central para o homem nascido na América, desde a caverna de Folsom até agora. Escrevo-o em maiúsculas porque é amplo que nos chega. Amplo, e sem piedade. (…) Alguns homens sobem para as suas costas e montam esse espaço, outros têm de se fixar como uma estaca de tenda para sobreviver. Na minha opinião, Poe cavou e Melville cavalgou. São as alternativas.” Denis Johnson, num espaço que engrossa como leite fermentado, sobre um chão que desaparece e aparece repentinamente, escava e cavalga, sobre si e sobre o espaço. Num deserto púrpura, onde os rostos, esvaziados pela ferocidade eléctrica, se trespassam sem se ver, só um caçador disposto a atravessar um sem-fim de metamorfoses poderia dizer o murmúrio dos corações mutilados.
“Incognito lounge” fica num condomínio no centro do mundo. Rodeado pelo deserto do Arizona. A geologia mais monumental ocupada pela mais terrível incapacidade, nenhum lugar para onde fugir. Encostados ao limite do Ocidente, geográfica e simbolicamente. Aí vivem seres sem rosto, que não sabem o que fazer com as suas vidas, a quem o acesso a essas vidas foi abolido. Olson diz no mesmo livro: “Para Melville, não era a vontade de ser livre, mas a vontade de subjugar a natureza que está no fundo de nós, enquanto indivíduos e enquanto povo. Ahab não é um democrata. Moby-Dick, o antagonista, é apenas o rei da força natural, do recurso.” Johnson surge quando nada mais há a dominar, quando tanto o mundo como os homens estão sufocados de irrealidade. A velocidade, a febre americana face à absurda resistência do deserto, do espaço sem fim, fechou-se na sua potência mais íntima, a amnésia. “a velocidade ignora a violência do amor.” diz Baudrillard em América e umas páginas mais adiante: “quero excentrar-me, tornar-me excêntrico, mas num lugar que seja o centro do mundo”. Pois bem, o centro do mundo está fechado, escreve Denis Johnson, só o Incognito Lounge está aberto. Nele são visíveis as questões que assolam o mundo “quase tão discretas como uma tempestade de meteoros”. Que alguém as olhe, que veja as vivências dos espectros, e as nomeie, que leia os sinais de inexistência em si e nos outros, é uma mudança vagarosa “eu escrevo/ e escrevo e nada/ transcendo, de nada/ fujo, nada/ nasce verdadeiramente de mim,/ e, no entanto, como que por magia, isso/ é melhor do que nada – eu sei que/ agora deves estar muito/ diferente, mas és/ exactamente igual,/ como aquelas estrelas cujo brilho/ perdura muito para além do momento/ em que se apagam…”.
Não é através de uma ascese que Johnson descobre a desolação que esvaziou o mundo, pelo contrário, “só posso seguir em frente se puser os pés/ onde não consiga respirar (…) Aflição, és aquilo que me empurra/ de um momento para o outro, de uma luz/ para outra, de uma palavra para outra,/ e eu estou aqui junto às águas/ porque neste espaço entre espaços,/ onde nenhuma coisa fala,/ eu sou o que essa coisa diz.” Trata-se de atravessar o tempo sem ilusões que o protejam da destruição. “O tempo tem infinitas raridades, espectáculos de todas as variedades; que revela coisas antigas no céu, faz novas descobertas na terra, e da terra ela mesma uma descoberta” (Thomas Browne). Incognito Lounge é habitado pela impossibilidade da metamorfose. Num mundo onde nada se nomeia, onde as relações se resumem a um espiamento do outro e à espera que alguma coisa interrompa a suspensão do tempo. Mas nada interrompe o decalque letal que a imagem imprime sobre as sombras. Os sonhos passam de um corpo para o outro, num conformismo patológico, numa mímica que dispensa qualquer espécie de reflexão “O parque de estacionamento está lotado, / e todos comungam do sonho/ de consumir mais e mais ainda,/ ao longo de uma tarde/ que muda como um rosto.” Um enredo de caminhos de desamparo, sobre uma dádiva desinteressada, “anda outra vez no meio da generosidade do relvado como se fosse feito de fósforo.”
De desastre em desastre, o deambular de Johnson passa da pobreza à descoberta, num movimento de perplexidade, de sideração. Uma das linhas de força da sua poesia é a capacidade de mostrar como procura, como escava num deserto atulhado de fantasmas. A perplexidade de quem não sabe onde a escrita o vai levar. Levado por lampejos e impulsos, o reconhecimento de um desejo que não é mensurável por nenhum instrumento tecnológico. “A cura/ para tudo é destruir/ todos os estetoscópios que, de quando em quando,/ transmitirão silêncio.” A ausência de respostas não é a recusa de atravessar um espaço, mas o que aparece ao entrar nesse espaço, por isso, quando nos dá a ver a confusão que o agarra, ela surge como um castelo de nuvens num azul impiedoso. Com a coragem poética de quem ao ser esfaqueado é capaz de dizer o brilho cintilante da faca e a pulsação viva do corte, sem nenhum traço de autocomiseração, numa generosidade que nos embaraça, talvez por estarmos habituados a ouvir os queixumes dos que se arranham a cuidar do jardim. Johnson quando se destrói mostra-nos a agudeza da relação. Não há sujeito que se reconheça na sua integralidade, nem mundo que se predisponha a edificações, o queixume é um rosto vazio com uma máscara de Pierrot. Apenas a ansiedade crescente da relação interessa ao olhar atento do poeta. Diz-nos a mudez, a persistência do que parecia não resistir debaixo da luz fluorescente, os destroços dos que procuraram a sua fonte. Estes seres separados das suas possibilidades não são apenas fantasmas, mas santos. Homens amputados do mundo, condenados a pairar sobre a impossibilidade das suas vidas, uma espécie de intocáveis que se torna a única casta num mundo inabitável. “serei capaz de a ver e ignorar/ este bairro, as cidades da terra, estas mesas/ onde, para a refeição das tentações, / se sentam os santos?” Não é preciso ir procurar ligações religiosas, a não ser que sejam limpas de qualquer forma de dogma. É uma posição ética. Um modo de habitar, numa extrema capacidade de atenção aos outros.
Quando lhe perguntaram sobre a influência de Whitman sobre a sua escrita, disse que não a conseguia reconhecer no imediato, mas que considerava o prefácio das “folhas de erva” como o seu manifesto pessoal, prefácio onde Whitman diz coisas como: “Os bardos americanos serão marcados pela generosidade e afeto e por encorajar os competidores… Eles serão Cosmos… sem monopólio ou segredo… felizes em passar qualquer coisa para qualquer um… Dia e noite famintos por iguais. Eles não devem cuidar de riquezas e privilégios….eles devem ser riquezas e privilégios….eles devem perceber quem é o homem mais afluente. O homem mais afluente é aquele que confronta todos os espectáculos que vê com equivalentes da riqueza mais forte de si próprio…” A fraternidade com o outro atravessa a escrita e o corpo de Johnson de um modo inevitavelmente mais violento do que em Whitman, não por questões de força pessoal, mas porque a possibilidade de ser Cosmos que Whitman fala se enraizava num mundo que ainda estava carregado de futuro, mas que agora se estilhaçou, se transformou num inferno sem nenhuma porta por onde entrar com a esperança às costas. No entanto, esta fatalidade não leva Johnson a um niilismo frívolo que o levaria a desprezar os que coexistem consigo. Se há uma interpretação possível de religiosidade nos seus livros creio que será algo similar ao que Melville diz numa carta: “De onde chegas, Hawthorne? Com que direito bebes tu do meu garrafão da vida? E quando o levo aos lábios – olha, são os teus e não os meus, sinto que a Divindade está partida como o pão da Santa Ceia, e que nós somos os bocados. Daí esta fraternidade infinita do sentimento.”
Baudrillard ao falar do êxtase e da inércia diz “Nós não procuraremos a mudança e não iremos opor o fixo e o móvel, procuraremos o mais móvel que o móvel: a metamorfose (…) Nós procuraremos qualquer coisa mais rápida do que a comunicação: o desafio, o duelo”. Em Denis Johnson a violência de um corpo que não se recusou nenhum combate, vai acompanhar a generosidade da violência critica, uma violência que rompe a fluidez apática e se metamorfosea noutro modo de ver. Dentro do correr catastrófico do progresso, a interrupção do que nunca abdicou de uma curiosidade incessante, sem a qual, como Pound sublinhou, não existe literatura.