Estamos na primeira semana de junho em Alfama. São 10h e pouco, mas nota-se que houve, há e haverá festa. A decoração das ruas está feita a rigor, as barraquinhas estão montadas e algumas pessoas falam alegremente, ouvindo-se por vezes que «as barraquinhas estão quase quase a abrir» e que «ainda não abriram porque eles estão cansados da noite anterior, coitados». De facto, trabalhar nestas noites, consideradas das mais especiais do ano, não é fácil. Que o diga Manuela, da mercearia ‘Manuela do João’, que fecha cedo para evitar a confusão que se gera à noite. «Antes ficávamos abertos, mas agora fechamos aí por volta das 20h. Ainda dá tempo para as pessoas virem aqui se quiserem», explica, deixando claro que, apesar de já não trabalhar como antes nestas datas festivas, adora a tradição. «Vejam só o meu trono!», diz, vaidosa, indo buscar o seu trono rosa com uma figura de Santo António no topo. «Adoro as marchas, adoro ver os jovens a divertirem-se, adoro o cheiro a sardinha e adoro ver o nosso bairro movimentado!», afirma com convicção, posando para a fotografia ao pé do seu santo preferido.
A verdade é que as festividades dos Santos Populares são marcadas por várias tradições, incluindo o uso de alho-porro, a brincadeira com martelinhos, a troca de manjericos e as marchas populares. O alho-porro é considerado um amuleto contra o mau-olhado e é frequentemente usado durante as celebrações. Os martelinhos de brincar são utilizados para tocar de forma amigável nas pessoas, trazendo alegria e diversão. Os manjericos, plantas aromáticas, são oferecidos como presentes e decorados com fitas e versos, simbolizando amor e amizade. As marchas populares, que têm origem no século XIX, são desfiles coloridos onde diferentes grupos representam as suas comunidades com trajes típicos, música e coreografias, competindo entre si. Estas tradições são parte integrante das celebrações dos santos padroeiros, Santo António, São João e São Pedro, e são uma expressão viva da cultura portuguesa, transmitida de geração em geração.
Foquemo-nos em Lisboa. Em 2023, a Marcha de Alfama participou no concurso das Marchas Populares de Lisboa com o tema ‘A Sina do Estivador’ e foi premiada com o terceiro lugar. Ganhou ainda prémios como Melhor Coreografia e Melhor Letra, que foram partilhados com a Bica. Também foi reconhecida pela Melhor Cenografia, juntamente com o Lumiar, e pelo Melhor Figurino, um prémio que também foi concedido a Alcântara e Madragoa. A categoria de Melhor Musicalidade e Melhor Composição Original foi conquistada com a música e a marcha de Carnide também foi distinguida nesta categoria com a sua canção ‘A Vedeta é Carnide’. Alfama, vencedora no ano anterior, foi penalizada com perda de pontos e acabou em terceiro lugar. Agora, os responsáveis estão em tribunal para recuperar o título perdido.
Mas isso não parece preocupar quem trabalha e vive em Alfama. Por exemplo, Rita, da Casa de Chás e Cafés Delícia, propriedade dos seus pais, recorda com saudade os tempos em que se reunia com os colegas da faculdade à porta do negócio que coordena há cinco anos e, depois, seguiam para o arraial. «Havia um espírito diferente. Queríamos comer e beber, claro, mas também aproveitar a tradição ao máximo. Agora sinto que as pessoas já não veem os Santos Populares com os mesmos olhos». Gosta verdadeiramente das tradições que existem, mas nota que Alfama é um bairro que tem vindo a mudar. «Se não se mete mão, perdemos tradições. Principalmente, a das marchas. Muitas pessoas já nem moram aqui e regressam apenas para os ensaios», lamenta. «São dias de diversão. Venham e divirtam-se: não venham para arranjar problemas», aconselha.
Na mesma rua, a Rua dos Remédios, sentadas em dois degraus, vemos Bina, Cristina, Paula e Lígia. «É o nosso bairro, é claro que gostamos dos Santos Populares! Adoramos as marchas e a sardinha», começa por dizer Bina. «Está sempre muita gente aqui. Durante o ano todo!», diz, à sua vez, Cristina. «Diversificou-se muito os sítios onde se faz os arraiais. Antes, a Madragoa, a Bica e Alfama faziam-nos, mas as pessoas dividem-se, hoje em dia, pelos bairros todos», explica Paula. «Somos muito poucos e a tradição vai ficando fraca, infelizmente», continua. «As pessoas não recebem nada em troca. Vêm daqui e dali, todos os dias, para os ensaios, mas muitas pessoas desistiram. O bairrismo está a acabar. Quando formos embora… Vai ser triste», sublinha. «Lisboa está a ficar descaracterizada. Não é só Alfama. Nós nascemos e crescemos aqui. As pessoas que vêm morar para aqui não sabem nada do que se passou. Antes sentávamo-nos nos degraus, entrávamos nas casas uns dos outros… Agora, há vizinhos que nem conhecemos!», lamentam quase em uníssono. «Antigamente, sabíamos quem morava onde. Atualmente, só vemos turistas, proprietários de alojamentos locais… Os moradores permanentes são poucos», declaram, ao som das rodinhas dos tróleis dos turistas a passarem pela rua.
«Muita gente foi enganada. Há velhotes que não sabiam fazer a conversão do escudo para o euro e saíam das suas casinhas a pensar que 2 ou 3 mil euros era imenso. Quando houve o boom do alojamento local, há uns anos, as saídas foram desenfreadas. Quando puseram um ponto final, já foi demasiado tarde», constata Cristina. «E agora há uma inflação tremenda e as pessoas não têm muitas opções. Não sei onde é que os políticos querem chegar. Será que querem que voltemos a ter barracas? Provavelmente, será essa a opção de muitas pessoas», prevê. Cristina também é assertiva: «Se dois jovens ganharem o ordenado mínimo, como é que conseguem ter casa? Por isso é que emigram, procuram uma vida melhor. Ninguém tem dinheiro para uma casa. Aqui há rendas de 1500 euros», exemplifica Paula. «Este bairro já não é nosso. Não se pode falar porque dizem que somos racistas e isto e aquilo, mas não é uma questão disso!_Somos um país de emigrantes, é claro que não somos racistas de nenhuma forma, mas a verdade é que vêm cada vez mais turistas e nós somos corridos daqui», frisa Cristina. «O alojamento local deu trabalho a muita gente, mas foi demais. Tinha de haver um limite. Prédios inteiros foram para este tipo de alojamento. Somos um país com poucos recursos financeiros. Toda a gente quer ter mais e, quem tem casas, não procura alugar a portugueses sequer. Lucram muito mais com quem não é de cá», adianta. «É a isto que chegou o nosso bairro e Portugal no geral», conclui.
Curiosamente, Bjørn Vang, jornalista norueguês que viveu em Portugal durante dez meses, escreveu o livro Um Estrangeiro em Alfama e aborda a sua experiência em território nacional, focando-se na definição de ‘alma portuguesa’. Já em 2015, o i noticiava que, apesar de não haver dados concretos, era evidente que o português nem sempre era a língua primária no bairro de Alfama. Muitos estrangeiros visitavam o bairro e alguns escolhiam estabelecer-se lá. Angelica, italiana, e Daniel, alemão, eram um exemplo dessa realidade há nove anos. Conheceram-se no Egito e decidiram viver em Alfama. Embora falassem pouco português, comunicavam com uma mistura de gestos, voz alta e palavras de base latina. Trabalhavam em casa e gastavam o seu dinheiro no bairro, acreditando que tal os tornava queridos pelos vizinhos. Em 2024, a realidade parece ser a mesma, mas talvez com mais imigrantes ainda. Separadas por poucos metros, encontram-se várias lojas e, principalmente, mercearias de imigrantes. Muitos deles, questionados pela LUZ, confessam não saber nada sobre os Santos Populares.
Chegou o momento de nos deslocarmos até à Bica, um bairro igualmente rico em História e tradições. O seu nome está ligado a Duarte Belo, que possuía terras com fontes de água, conhecidas como bicas. Uma dessas bicas, famosa pelas suas propriedades sulfatadas, foi realocada em 1615 e é ainda hoje visível, embora já não tenha água. Outras bicas, como a Bica Grande e a Bica Pequena, também fizeram parte do bairro, sendo locais de lavagem de roupa e banho.
A Bica – onde os novos negócios modernos misturam-se com as antigas tascas e mercearias – divide-se em três partes: Bica de Cima, Bica de Baixo e Bica do Lado de Lá do Elevador, cada uma com a sua identidade e pontos de encontro. O Elevador da Bica constitui uma atração icónica que percorre o bairro. Já foi tema de intervenções artísticas e apareceu em filmes, como Lisbon Story de Wim Wenders. As suas ruas extremamente inclinadas e os elétricos que as percorrem fazem as delícias dos turistas, que tiram fotografias com grandes sorrisos e os braços bem abertos, querendo mostrar o quão felizes estão por experienciarem Lisboa.
Contudo, aqui também a tradição já não é o que era. Fernando é proprietário da Cafetaria Nando e costumava participar nos arraiais, tendo até um espaço ao pé da sua mercearia para esse fim. Porém, deixou de o fazer. «Não é só pela idade, é também porque as coisas não funcionam como antes. E nem há pessoas a querer trabalhar! Nestas noites, há quem só queira beber e nem sequer aproveite os Santos Populares como deve ser. Não acho piada a isto, sinceramente», admite. Maria do Carmo, sua cliente, tem mais de 90 anos e vive aproximadamente há 80 na Bica. «Quando era nova gostava imenso dos arraiais, das marchas… Do movimento todo! Mas, agora, já não suporto tanto barulho e não acho tanta graça à forma como tudo é festejado», declara: «Se não fossem uma ou duas pessoas aqui do bairro a levarem isto para a frente, se calhar nem arraiais tínhamos», lamentam.
«À noite é só copos e bêbedos. Bebem e metem os copos, latas, etc. nos nossos degraus e nas nossas janelas. Antes as coisas eram muito mais bonitas do que são hoje… No tempo dos outros senhores é que era bom! Apesar das mudanças, os Santos trazem muita alegria aqui», afirma Maria do Carmo e Fernando concorda. Ambos recordam que a Bica ganhou as marchas populares no ano passado – sagrando-se vencedora nas categorias de melhor coreografia, melhor letra e melhor desfile na avenida – e anteveem:_«E este ano vai ser igual!».
O índice de saturação turística em Alfama
e no Bairro Alto
Ali ao lado, no Bairro Alto, que ficou em segundo lugar nas marchas populares do ano passado, encontramos alguns restaurantes fechados e poucas pessoas, para além de turistas a fazerem visitas guiadas, nas ruas. E mais lojas de souvenirs e mercearias de imigrantes. Já em 2018, um estudo realizado pelo geógrafo Luís Mendes, da Universidade de Lisboa, revelou que nos bairros de Alfama e Bairro Alto havia aproximadamente dois residentes para cada turista. Este índice indicava que a proporção de turistas estava a aproximar-se da de um turista para cada residente, o que seria um sinal de saturação turística. O estudo considerou a oferta de camas turísticas na plataforma Booking.com em fevereiro de 2016 e a população residente com base no recenseamento de 2011, mas não incluiu a oferta de Airbnb nem os despejos causados pela nova lei das rendas de 2012.
Em declarações à Lusa e ao Diário de Notícias, Luís Mendes, do Centro de Estudos Geográficos (CEG), defendeu a necessidade de um estímulo para a análise e monitorização em tempo real do alojamento local, com o objetivo de controlar e regular esta atividade, contribuindo para um desenvolvimento mais sustentável do turismo. Sugeriu a aplicação de um sistema de quotas com usos mistos no centro histórico das cidades, para evitar a gentrificação causada pelo turismo. Recomendou a realização de estudos de diagnóstico com o apoio das Câmaras Municipais para monitorizar a oferta turística do setor imobiliário no centro histórico e viabilizar a aplicação de índices de capacidade de carga turística por secção ou quarteirão de bairro. Sugeriu igualmente a criação de uma plataforma eletrónica para monitorizar e avaliar regularmente as dinâmicas de uso e transformação do património edificado no centro histórico.
Em relação ao licenciamento do alojamento local, Luís Mendes argumentou que a licença para esta atividade está subvertida, permitindo a instalação de estabelecimentos em imóveis destinados ao uso habitacional. Defendeu que os municípios devem ter a capacidade de impor condições para a autorização de registo de alojamento local e que é necessário reforçar as normas que distinguem as iniciativas individuais e familiares das de uso intensivo e de natureza empresarial. O geógrafo criticou o atual regime do alojamento local como uma ‘não lei’.Naquela época, o parlamento estava a considerar cinco projetos de lei sobre o alojamento local, defendendo, na generalidade, a obrigatoriedade de uma autorização por parte da assembleia dos condóminos para o exercício da atividade.
Regressando ao Bairro Alto, a passar pelo Largo de Camões está Maria, que vive lá há cerca de 22 anos, depois de ter vivido no Sacramento. «Gosto da tradição dos Santos Populares. Acho piada às marchas. Embora seja algo muito trabalhoso, dão muita alegria aos bairros», afirma, sendo que nunca participou numa marcha. «Há muitas mais pessoas por aqui nestes dias. Incluindo turistas, claro», acrescenta. Não concorda que a tradição esteja a desaparecer. «Todos os anos aparecem mais marchantes e mais grupos. Penso que isto não acabará desde que haja pessoas com boa vontade e força para continuar. Há quem viva muito as marchas e dê tudo! Abdicam do seu lazer para fazerem isto».
As marchas populares ocorrerão na noite de Santo António, de 12 para 13 de junho, descendo a Avenida da Liberdade. O tema central deste ano é o rio Tejo. Com a participação de centenas de pessoas, vinte grupos de diferentes bairros competirão no evento. Além da grande Marcha de Lisboa, cada grupo terá as suas próprias músicas, com letras de Flávio Gil e composições de João Paulo Soares. Como nos anos anteriores, o desfile será iniciado por três marchas extraconcurso: a marcha infantil de ‘A Voz do Operário’, a marcha dos Mercados e a marcha da Santa Casa. Há também uma marcha convidada, a Marcha Infantil das Escolas de Lisboa, formada por 42 crianças, e os Noivos de Santo António participarão no evento. As festividades de Lisboa começaram no final de maio e continuarão até ao fim de junho, encerrando com dois espetáculos no Terreiro do Paço. O programa inclui a tradicional exposição dos Tronos de Santo António e as ‘Montras em Festa’. Existem ainda 15 arraiais ‘oficiais’ e muitos mais organizados de modo espontâneo. O_próximo passo é inscrever as marchas populares de Lisboa na lista nacional de património cultural imaterial.