Dois anos depois de Má Sorte no Sexo ou Porno Acidental (2021), um filme que, de algum modo, fecunda o tema da virtualização como gestão da fantasia sexual, ao colocar nos dias de hoje a tecnologia como aquilo que simultaneamente ‹‹gera›› e ‹‹gere›› aquele desejo sexual mais intenso, o cineasta romeno Radu Jude regressa com Não esperes demasiado do fim do mundo (2023). Prevê-se, em parte, o prolongamento dos mesmos interesses por parte de Jude: a psicologia da personagem feminina, a linguagem lasciva e obscena, a exposição da expansão desmesurada das fontes publicitárias na cidade, a matemática da morte e os respetivos serviços funerários e, por último, a denúncia de certos comportamentos sociais, como a manipulação, a condução agressiva ou as bravatas recorrentemente lançadas pelos homens sobre as mulheres. Desconfiaríamos de imediato se o estilo, o modus operandi ou as obsessões se perdessem inteiramente. É vasto o número de casos no cinema em que essa insistência e procura exaustiva pelo aperfeiçoamento tenha conduzido à preferência de um ou outro ator, um ou outro personagem que sai da sombra e regressa mais afinado, arcando ao mesmo tempo com a causa e a consequência, contagiando mutuamente a técnica de quem dirige e de quem se vê dirigido. Deste modo, tal como acontecera com a atriz Setsuko Hara e o realizador Yasujiro Ozu, ou com Joanna Kulig e o cineasta Pawel Pawlikowski, Ilinca Manolache, que no filme anterior de Radu Jude interpretara o papel secundário de guia turística, assume agora as rédeas da personagem principal.
Mas antes de avançarmos, importa referir que, dadas as tentativas pouco empenhadas e precipitadas das críticas altamente superficiais e insuficientes da parte de Jorge Mourinha, no Público, Manuel Halpern, na Visão, e do aviso fracassado de João Antunes, no Jornal Notícias, mais um tríptico da praça a converter a redução da leitura de um filme a uma avaliação primária ou à lógica da “estrelização” e, por isso, também esterilização da potência do mesmo, fomos impelidos a tomar uma posição mais implicada, no esforço de calcetar um a um aqueles buracos deixados na estrada que a tornavam tão intransitável para a circulação da obsessão automobilística de Jorge Mourinha.
Apropriamo-nos, assim, das cartadas que Louis Armand lança a propósito da literatura para as estendermos a um baralho mais vasto e completo que represente os dois lados de qualquer gesto cultural: ‹‹Dois conceitos de ‹‹literatura›› parecem assim existir lado a lado e ocupando virtualmente o mesmo espaço: o da literatura como aquilo a que Althusser chamou Aparelho Ideológico do Estado e o seu aparente contrário, a literatura como subversão da ideologia do Estado. A primeira associa-se à ‹‹institucionalização›› da cultura – embora, claro, tenha como premissa que a cultura, no seu sentido essencial, já é o discurso do Estado; a segunda associa-se à noção vanguardista de autonomia, não como uma afirmação de ‹‹arte pela arte››, mas como uma orientação crítica perante o Estado, fundada numa alienação constitutiva a partir dele››, isto é, admitindo-se enquanto possível adversário, na esteira consciente e corajosa da crítica. Para estes, os que verdadeiramente o conseguem, lançando de antemão o dado que contém os nomes do inimigo e optando pelo lado do tabuleiro onde o exercício se torna mais exigente, e por isso mais credível, estes mesmos que prescindem de ‹‹um lamento que será ensaiado ao longo de gerações até ao momento em que as posições se invertam ou as sortes sejam revertidas nalguma Terra Prometida literária››, abandonando-a por trás de uma escrita conflituosa que procura dizer de outra forma ou de uma imagem que provenha de composições várias, colagens mais complexas e contradições internas, próprias do funcionamento de qualquer pensamento, haverá sempre cobertura e um lugar posto na mesa. Na pior das hipóteses, a crítica atuará como um j’adoube, interrompendo o jogo, vincando o lugar exato de cada peça do adversário, renovando o rigor antes de prosseguir o jogo, tal e qual como quando deixado antes da interrupção.
É assim que enquadramos Não esperes demasiado do fim do mundo, onde vem oferecida a possibilidade de nos entranharmos nas 24 horas de trabalho de Angela Raducano, resultando o espectador como a incorporação viva do movimento completo dos ponteiros de um relógio, confirmando a pena do tempo e, se possível, extraindo dessa denúncia a crítica que alimentará o seu último ensaio de liberdade. Angela trabalha a partir de Bucareste como assistente de produção para a Forbidden Planet, uma empresa multinacional austríaca que pretende, do testemunho de uma data de operários que sofreram acidentes de trabalho, escolher um que os represente num anúncio, premiando-o com uma quantia irrisória e incentivando-o a contar a sua história para a câmara. Mais importante do que a veracidade e individualidade das histórias partilhadas, torna-se imprescindível que os candidatos alertem para a importância do uso de equipamento de proteção e segurança, em prol de um maior benefício da imagem da empresa. Lembramo-nos simultaneamente das palavras de Mckenzie Wark: ‹‹A história produzida nas instituições da classe dominante transforma a própria história numa forma de propriedade (…), a história dominante é apenas uma instância visível da posse do poder produtivo, enquanto representação, pela forma dominante de propriedade. Até as histórias supostamente “radicais”, as histórias sociais, as histórias dos oprimidos, acabam como formas de propriedade, vendidas de acordo com o seu valor representativo, num mercado emergente de comunicação mercantilizada›› e das de Vania Baldi, vincando a mesma postura: ‹‹Os elos entre o neoliberalismo e as tecnologias digitais revelaram uma convergência ideológica e operacional estratégica, abrindo o caminho para a redução das relações humanas a interações funcionais, onde os indivíduos são perspectivados como interfaces que guardam reservas de dados, de atenção, consenso e crédito para as interfaces das plataformas, da política e do comércio, cada uma com interesses específicos mobilizados pelas lógicas do marketing››.
O realizador sublinha-o em momentos como quando Angela marca uma reunião com o representante de uma imobiliária para evitar que este proceda à transladação dos corpos dos seus avós, uma vez que estão enterrados numa porção do cemitério que cresceu sem aprovação legal e sem respeitar a distância sanitária mínima, implantando-se nas imediações de um futuro projeto de luxo, e este se mostra indisponível à hora combinada por se encontrar numa aula de mindfulness. Ou mesmo quando, durante a reunião, o empresário sugere que a empresa pagará todas as despesas necessárias, derivado ao facto de os seus clientes não poderem sair dos prédios contra os túmulos de um cemitério privado, proferindo as seguintes palavras: “Imagine tomar um café no nosso terraço em frente ao choro de uma viúva negra. Ao menos se fosse uma viúva jovem e querida como você”. Ou ainda, quando a chefe do departamento de marketing da empresa multinacional austríaca que contratara Angela, ao analisar o casting dos vários candidatos para o anúncio, exclui um porque os danos causados pelo acidente são demasiado assustadores, e admite como hipótese outra porque, como é cigana, mostrará que são mais inclusivos. Não há nada de novo nesta recolha e consequente exposição de atitudes que permanentemente pontuam os nossos dias. Aos poucos, vai-se tornando evidente a sobreposição dos vícios privados, característicos de um ideário narcísico e impiedoso por parte daqueles que se encontram num lugar dominante, face ao benefício público. Em cada um destes momentos, pela mestria com que vêem escritos os diálogos, Jude opera com a capacidade de nos provocar uma perturbação no riso, uma indignação comum, deixando-nos à deriva entre as margens de um humor desconfortável e de uma moralidade que em parte ainda não conhecemos.
Entre essas várias entrevistas aos possíveis candidatos, Radu Jude mistura as sequências a preto e branco de Angela a conduzir com cenas a cores de uma outra mulher taxista, retiradas do filme Angela merge mai departe (1981) de Lucian Bratu, também passadas em Bucareste, desdobrando-se o filme em vários tempos e, dentro destes, em relações distintas de duração e imagem. Os episódios retirados do filme de Lucian Bratu funcionam como miragens em câmara lenta ou ampliações estáticas, compondo um ruído de fundo. Sugerem um outro tempo de leitura, mais abstrato, que contraria o sentido natural e banal do discurso commumente ordenado, uma estratégia que compreende roturas e desvios próximos aos de Godard, admitindo um jogo aberto a possibilidades infinitas de interpretação. Há fundos partilhados de fábricas que se mantêm, panoramas urbanos que regridem, bairros que se extinguem depois da ditadura de Ceausescu, lugares que permanecem pobres e marginalizados. Resumidamente, ‹‹zonas sinistradas, onde não se pode viver e amar porque se está esteticamente alienado›› (Bernard Stiegler), precisamente aquelas onde vivem praticamente todos os candidatos ao anúncio. Do contraste entre a suspeição de um passado a cores e a representação axadrezada da contemporaneidade pós-pandémica a preto e branco, subvertendo os cânones do cinema, vamos alimentando a ideia de que já não somos capazes de fazer funcionar a potencialidade das cores e de que, não as merecendo enquanto representação, resultamos condenados a participar nessa tristeza comum, incolor e amorfa.
Das intervenções que resultam da apropriação que Jude faz do filme de 1981, pouco retiramos que nos valha de esperança. Não nos basta virar a memória ao contrário, agitar com força e voltar a espreitar para percebermos que tudo aquilo sobrevive ainda na caixa dos nossos dias. Somos continuamente confrontados com ideias que ainda ressoam, comentários que ainda não perturbam o suficiente e que sustentam gargalhadas na sala inteira, quando deveriam gerar um estorvo sério, um desequilíbrio geral. Há uma cena em que um cliente da taxista a humilha, dizendo que não é um emprego de mulher, e logo de seguida diz ser cozinheiro. Aqui, o realizador corta para um plano de Angela dentro do carro a ouvir uma música romena que canta: “Mãos ao alto para a faxineira, / Ou não, ela não pode usá-las de qualquer maneira”. O mesmo é constatado quando um dos clientes da taxista lhe oferece um ramo de flores, convidando-a para o acompanhar num aniversário de um colega, apenas e caso ela coloque maquilhagem e mude de roupa, insistindo: “Estou seguro de que com alguns retoques parecerás uma mulher”. Percebemos que afinal, ao nascermos, não fomos deixados num rio, mas sim numa bacia endorréica – qualquer coisa de estagnante e movediço, sem direção. E, se por momentos nos acreditamos capazes de entrever um espaço onde se entorna alguma luz, nos momentos em que Angela assume uma personalidade mais violenta e confrontativa, através dos pequenos hiatos que excedem o tempo do trabalho, nos quais grava vídeos para a sua conta do TikTok com um filtro que lhe altera a identidade, incorporando o rosto de Andrew Tate, uma figura do aparelho mediático associada aos ideais de extrema direita, conhecida por expor comentários altamente machistas e xenófobos, reproduzindo-os e ridicularizando-os, e, se estes vídeos que aos poucos se tornam virais nas plataformas digitais, ao atingirem as dezenas de milhares de visualizações, nos convencem que representam uma possível revolução digital a cores, rapidamente nos apercebemos que contêm em si o risco de uma certa impotência.
Por um lado, Radu Jude recorre habilmente aos meios que critica para construir a própria crítica, desobedecendo duplamente aos princípios éticos do espaço virtual, isto é, condena o uso que certas figuras instauram em aplicações como o TikTok através de uma sátira que se serve da própria aplicação para disparar os amoques de Angela para a vida dos outros, incentivando-os a juntarem-se a uma utilização mais produtiva. No limite entre a obediência e a desobediência, vai florindo a medo uma energia selvagem, o direito indelegável à resistência. Por outro, se concordarmos com Fréderic Gros e partirmos da ideia de que ‹‹é necessário urdir uma rede de sociedades de amigos, plurais, dispersas, discutindo arduamente, mas sem ódio, nunca deixando de polir os seus desacordos por meio da fricção do espírito de cada um contra o discurso dos outros››, levantam-se as seguintes questões: Seria diferente se, de repente, não um mas milhares de utilizadores roubassem a identidade a Andrew Tate e começassem a difundir videos reproduzindo humoristicamente os comentários obscenos? Seriam estes capazes de apagar o valor da mensagem original através das excessivas réplicas? Multiplicando as fontes da ofensa, teria esta a mesma força no espírito dos consumidores? Jonathan Crary diz-nos que ‹‹as narrativas da internet como campo igualitário e horizontal das esferas públicas apagaram toda a linguagem inscrita na classe ou o activista da luta de classes, num momento histórico em que os antagonismos das classes são mais agudos que nunca. Na verdade, o complexo internético nunca foi usado, nem sequer com menor conseguimento, na promoção de um programa anticapitalista ou antibélico. Dispersa quem foi desprovido de poder num rol de identidades, facções e interesses separados, e é particularmente eficaz na consolidação de grupos reaccionários››. Tratar-se-ia, portanto, da produção coletiva de uma frequência viva e consciente, acordada, que visasse hackear o post imediato dos que abusam da posição de poder e privilégio mediático, dissuadindo-os numa corrente mais extensa. O problema talvez tenha sido, desde o princípio, a recusa imediata do adversário, a procura de uma alternativa distante sustida por um discurso demasiado próprio. Dizem-nos que aumentando a oferta, o valor reduz, então deixe-mo-lo começar a primeira jogada, escolher a cor das peças se for preciso – dada a propensão racista, começará com as brancas, que como dita o manual de xadrez, avançam primeiro – para depois nos apropriarmos das regras do adversário para dominarmos o jogo, ameaçando o rei com o xeque. Damos a primeira contra-abertura sem a nomearmos, uma espécie de doença estranha, um vírus que trará o contágio, depois a epidemia, até que se concretize a ambição da imunidade de grupo.
Angela atua sem poder na esfera mediática, perdendo a força da construção crítica e oportuna que proporciona, porque os restantes utilizadores não se juntam, caindo no vazio de um mero evento, dado que qualquer mensagem isolada baseada num estímulo virtual e digital contém em si mesma um limite de atuação no pensamento, na memória e na consequente apreensão, reduzindo-se desde o seu ponto de partida a uma ‹‹miséria simbólica›› (Bernard Stiegler). E a empresa multinacional, ao apropriar-se de uma data de vítimas reais, manipulando-as, alterando-lhes as verdades e disseminando-as através dos seus anúncios publicitários, aparenta ter mais capacidade em converter esse estímulo num efeito imediato de consumo, embora caindo igualmente numa sensibilização estéril e volátil. Como aponta Lewis Mumford, ‹‹O que importa ter em mente é que a omissão da avaliação da máquina e da integração desta na sociedade em geral não se deveu simplesmente às questões de distribuição de rendimentos, aos erros de organização, à ganância e às vistas estreitas dos dirigentes industriais – deveu-se também à fragilidade de toda a filosofia em que assentavam as novas técnicas e invenções››. Talvez tenha chegado o momento de reconstruirmos essa filosofia, redirecionando o algoritmo para um horizonte de libertação coletiva, e não como ‹‹instrumento de repressão›› destinado a uma continua obsolescência. ‹‹O deserto não pode mais crescer: está em todo o lado. / Mas pode ainda aprofundar-se. / Ante a evidência da catástrofe, há os que se indignam e os que agem, os que denunciam e os que se organizam. / Nós estamos com os que se organizam››, enuncia o manifesto anónimo Convocação (Appel, 2003).
E se tudo isto flutua ao longo do filme, também ouvimos subir à superfície esporadicamente pequenos desarranjos propositados, em que Radu Jude concilia o humor com a séria vertigem. Há um momento, já embebido naquele cansaço nocturno, em que Angela se dirige para o aeroporto para receber Doris Goethe, a representante do departamento de marketing de Forbidden Planet. Trata-se de um dos poucos vislumbres do contraste aproximado entre o indivíduo embrutecido e o seu poder dominante. O apelido suscita de imediato a curiosidade de Angela que após receber a confirmação de que provém efetivamente de J. W. Goethe, tenta esclarecer algumas das suas dúvidas relativamente à sua obra, mas Doris confessa que nunca o lera. No desenrolar da conversa, Angela deixa escapar o quão recorrentes se tornaram as horas extra de trabalho e os salários tão irrisórios, mas mente, afirmando que aconteceu apenas noutros projetos. Longe da câmara e do espaço virtual, Angela mostra-se incapaz de confrontar o poder dominante. Não se trata já da sanção que poderia surgir imediatamente a seguir ao comentário. Para quem sobrevive a custo, constantemente coagido pela pressão descontrolada do trabalho, torna-se insuportável sequer a coincidência consigo mesmo. ‹‹A Educação é um processo para toda a vida… Uma formação que dura enquanto durar a tua vida profissional… Trabalho que levas para casa… Trabalhar a partir de casa, regressar a casa do trabalho. Uma das consequências deste modo “indefinido” de poder é a vigilância exterior ser suplantada pelo policiamento interno. O controlo só funciona se formos cúmplices dele››, alerta Mark Fisher, procurando restituir uma visão mais clarividente entre o indivíduo e o sistema.
Pouco depois, a empresária queixa-se da agressividade dos condutores romenos, o que leva Angela a falar-lhe de uma estrada na cidade de Buzău onde há mais cruzes por pessoas que morreram em acidentes de viação do que quilómetros. Aqui, o realizador quebra uma vez mais o monocromatismo da ação principal e inicia uma sequência silenciosa de quatro minutos com planos fixos de mais de uma centena desses monumentos improvisados à margem da estrada, como se nos colocasse diante de uma roleta russa. O tambor vai rodando e não sabemos quando terminará de vez o jogo. Olhamos uns para os outros na sala de cinema, damos conta do peso da nossa impaciência, sem sabermos como afrontar a dureza desse silêncio partilhado, dobrado sobre o luto de uma centena de estranhos. A conversa termina com Angela a perguntar se é verdade que a empresa de Doris tem vindo a destruir a floresta romena com a extração da madeira, ao qual a multimilionária austríaca responde: “Eu trabalho no departamento de marketing, não faço a mínima ideia. Mas não creio, nunca ouvi nada acerca disso. De qualquer modo, se acontecer é porque os romenos o permitem”. Não sabemos se hipócrita ou inocente o desconhecimento da terra queimada, mas na incapacidade de avançar com um diálogo que supere a soma das partes, ‹‹mais vale morrer em revolta››. (Louise Michel)
Num período em que cada vez mais a intermitência de infindáveis estímulos e interações díspares nos impossibilita de assimilar a informação com a devida atenção e profundidade e, tendo em conta, que na década de 30 o Average Shot Length (ASL) – duração média do plano entre dois cortes – era de 12 segundos e hoje se aproxima dos 2,5 segundos, o realizador romeno decide terminar o filme com dois planos longuíssimos: o primeiro com quase 10 minutos e o segundo, e último, com 25 minutos. Jude mostra-nos o esqueleto da operação com toda a informalidade, tal como num dos planos intermédios do filme em que vemos a sombra estendida no chão de meia dúzia de membros da equipa de filmagem. Assistimos ao desenvolvimento dos vários takes que serviram de base para o anúncio: começam as pequenas adaptações da informação, a rasura de certas expressões, a sugestão de um ou outro gesto; dá-se o último corte do filme para o plano final, uma repentina alteração da luz e das posições dos atores; entra depois a chuva e os seus (d)efeitos, a equipa técnica a trazer os guarda-chuvas e a desistir progressivamente, até que acabam por substituir as palavras da testemunha por cartões verdes onde a empresa poderá colocar o texto que pretender em pós-produção, numa referência ao videoclipe de “Subterranean Homesick Blues” de Bob Dylan. De nada nos valeu o trabalho, muito menos as testemunhas. O acidente permanecerá por contar e ficará reduzido ao valor do prémio que certamente calará Ovídio, o operário escolhido para o anúncio. Vinga de novo a exploração monopolista do Homo economicus sobre o cada vez mais raro Homo sapiens. Sobe-nos à memória a frase resgatada por Mark Fisher e atribuída a Fredric Jameson e Slavoj Žižek: ‹‹É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo››.
*
Não esperes demasiado do fim do mundo
dos dedos beijados que outrora premiam os gatilhos
das ideias já extintas pela ausência de mãos
que as justifiquem.
A agulha que trazes na mão serve-a ao medo
desfia a visão em grumos, deixa que se percam
na segunda margem do rio
os meandros desse teu rosto fundo.
A terra é já um lugar inconcebível
e nem o voo desacelerado dos pássaros
é capaz de lembrar deste silêncio
um futuro.
* Cabe-nos registá-lo, expô-lo através das suas fragilidades, denunciando a razão que fez dele um falso exemplo de luz, força e poder. Manipular a imagem possível, converter essa insatisfação surda numa prova de amor e acreditar que ninguém testemunhou ainda o lado da derrota, combatendo essa pobre promessa com que nos costuram os dias. Condenamos, assim, o esforço de Radu Jude à equipa daqueles escritores mais persistentes que insistem para entrar em campo quando o jogo se mostra mais perigoso, expondo a ferida da ‹‹hipertrofia da promessa›› capitalista para levar às costas a atemporalidade desta ‹‹pobreza da existência›› (Reinhart Koselleck), porque depois de uma ‹‹rutura ruidosa e violenta com a ordem vigente (…) o sangue sobe para a renovação secular na velha árvore humana (a árvore da miséria). (…) As flores vermelhas do belo bosque saem sangrando dos ramos; os botões inchados rebentam: eis as novas folhas e flores›› (Louise Michel), as estacas para o novo mundo, um punhado de denúncias que alimentam o único toque capaz de desafinar o nosso olhar ferido