Afonso de Melo, em Gelsenkirshen
GELSENKIRSHEN – Sou uma ilha. Ou seja, no meu assento, o 150A, na bancada de imprensa da Arena auf Shalke estou rodeado por jornalistas espanhóis por todos os lados. Vendo bem, mais ou menos como acontece em Portugal. Ou, para citar o Caetano Veloso, sou o homem que fala português, essa língua que, tanto na Europa como na América do Sul, só faz fronteira com castelhano. A única saída é o mar. Aqui o meu mar é o relvado. Mas, mesmo para ver bem o relvado preciso de esticar a cabeça por umas boas centenas de adeptos espanhóis. Vale que são uns pândegos. Há um, vestido de toureiro, que grita: «Camarero!» E a turba responde: «Sí!» Depois o porta-voz grita outra vez: «Camarero!» E de novo: «Sí!» Então entra a palavra de ordem: «Una ramera!» E a malta em coro canta: «Duas rameras… guajira cuantas rameras!!!» Têm a sua graça e não ofendem por aí além porque mulher séria não tem ouvidos e, além disso, não se dirigem a ninguém em especial. Compreende-se que um Itália-Espanha, jogo que por si só tem história firme no futebol mundial, tenha também a sua vertente musical. Gosto particularmente do hino dos italianos: «Fratelli d’Italia/L’Italia d’è desta/(…)/Dov’è la Vitoria?» Perguntam onde está a vitória, mas é preciso procurá-la embora, tendo em conta a aritmética do grupo, um empate até pudesse ser bom para ambos. Por isso coube-me a mim fazer a pergunta para com os meus botões, aqui remetido à minha prisão espanhola: qual das duas seleções decidirá que é melhor apostar no jogo de hoje e garantir o apuramento imediato? Se os italianos não sabem onde está a vitória, eu sei que a resposta ia ser dada no tal mar verde que é o meu Atlântico de Gelsenkirshen.
Nem de propósito os alemães gostam de chamar arenas aos estádios. Logo este que é de ferro galvanizado e traz boas recordações aos portugueses. Se os espanhóis vinham prontos para uma tourada, «hostia!», aí tinham o palco ideal para ela, se é que os rapazes que costumas vestir de azul (ontem de branco), com maioria de adeptos nas bancadas, estivessem para aí virados. De início até pareceu que estavam. O primeiro ataque da Roja infiltrou-se da defesa da Itália como bactérias. Silenciosamente, sem se dar por ela e já Donnarumma era obrigado a uma defesa complicada.
Há que dizer à maneira de Garcia Lorca que estamos perante duas equipas que têm duende, esse talento que não se explica mas sobe por dentro a partir da planta dos pés e valeu com que Dali dissesse uma vez ao Manitas de Plata: «Cada vez que tocas até os bombeiros se incendeiam». De um lado e do outro a bola foi sendo trocada com a suavidade da belbutina. Se a «azzurra» já não está completamente amarrada a essa diabólica invenção do «catenaccio» que lhe foi impingida por um argentino de poucos escrúpulos chamado Helenio Herrera, esta Espanha parece ainda ter na alma resquícios da antiga Fúria. Encaixaram-se, pois. Uns mais em passe; outros mais diretos. Fez-se ouvir a corneta à ordem de um qualquer inteligente. Yamal e Williams puxaram uns «olés» à conta de reviengas. Mas o morlaco vermelho de Gelsenkirshen nem com o estímulo das bancadas é de marrar a direito. Ficamos à espera de qualquer coisa que não surge. Qualquer coisa palpável que não se esgote na satisfação do drible ou da tabelinha inconsequente. Veio num remate violento de longe de Fabián. Mas era preciso mais para um jogo que carregava tanta expectativa. A Espanha estava por cima e, no entanto, parecia mordida pelo mosquito da ineficácia.
Entre a ópera e a zarzuela
Onde está o «chico» vestido à Manolete? Aquele que gritava: «Camarero»? Não o vejo no seu «traje de luces» plastificado. Também terá sido picado pelo maldito insecto? Quem grita qualquer coisa que aqueça corações? E, ao mesmo tempo, como atrás disse, se o empate até fica bem aos dois, para quê engalfinharem-se numa luta bruta, corpo a corpo? A Itália espera por erros, mas a Espanha não os comete. O Tempo, esse, passa…
Dita a regra não escrita do futebol que, quando corre, o Tempo corre contra uma das equipas. Diria que essa dança das horas (ou da hora e meia) de um Ponchielli para aqui chamado, convinha mais aos italianos. Se eles não estão de acordo que se queixem, mas nada no seu comportamento me fará retirar o que afirmo. «Itália! Itália! Itália» gritam as gargantas azuis empurrando os seus para a tal vitória que, a continuarem assim, não irão descobrir onde está. Mas nem as cordas vocais dos que estão habituados à ópera desmanchava aquele lento bailado flamenco próprio de um «tablao cordobés». Ficaremos assim até ao fim? Ora tubérculos, já fiz mais perguntas e dei mais respostas nesta crónica do que num exame do intimidante professor Pedro Soares Martinez que não, não tinha nada que ver com o selecionador nacional. Agora que respondam eles, lá em baixo, no campo que é o meu mar de conveniência enquanto os meus camaradas dos lados se vão contorcendo de nervosismo injustificado. Não sei se deram conta do meu silêncio mas, entretanto, já vamos com quase 10 minutos da segunda parte. Se não deram, pouco importa, mas pretendi que o silêncio fosse significativo. O mesmo silêncio que caiu sobre a bancada sul quando Calafiori fez um autogolo (55m). Ah! Bom! Agora a corneta voltou a soar. «Que viva la España!» E palmas ao ritmo de uma zarzuela. O golpe é duro para os italianos. Cabe-lhes subir para pedaços de terreno que até aí pouco tinham frequentado. Estão abafados dentro da sua ncapacidade de reagir com rapidez. E sim, agora os minutos dançam ao contrário. A arena de Gelsenkirshen ressoa com os «olés!» de Las Ventas. A Espanha é melhor e está decidida a demonstrá-lo. No meio, Fabián e Rodri são impressionantes, como é impressionante o remate de Williams à barra de Dunnarumma. Uma confiança que advém do resultado a da inoperância atacante do adversário permite os toques de bola sucessivos que ainda irritam mais quem está a perder. É tempo de substituições para De La Fuente. Ou talvez tempo para perder tempo. O apuramento dos espanhóis está garantido. Não há quem possa dizer que não é justo. E ainda há, no finalzinho, duas oportunidades para os vermelhos. Deixo de ser uma ilha. Tenho o Tram 302 à minha espera para Bochum. Só mesmo numa arena é que a ópera perde para a zarzuela.