Habituámo-nos a ver o mundo quieto, submisso, ao dispor das mãos que o trabalham. Talvez se escape como um gato, numa mobilidade demasiado brusca e subtil para a nossa compreensão. Capturados por um sono trémulo, absortos nas fantasias que construímos, andamos no ar, enleados noutros ventos. Sonhar de olhos abertos era um atributo dos que abriam fronteiras inesperadas, hoje é um talento servil, um modo de passar do sono para a vigília sem que a realidade nos arranhe. Os sonhos, diz Benjamin, são doravante um caminho pedestre em direcção ao banal. As coisas, capturadas num molde de aço, mostram ao sonhador as faces limpas e desmaiadas. Ao acordarmos, depois de uma destilação vagarosa dos desejos, não vemos nada. Passamos embalados num perpétuo desencanto. O tempo do cansaço coincide com a mais feroz cegueira para com os outros. A existência romba, sem gume que faça distinguir a sua estranheza, não provoca assombro, e a presença humana, ténue como uma sombra, dispõe-se à mais sórdida indiferença.
Às crianças só lhes ensinamos uma coisa, a despertar, diz Annie Dillard, mas podemos passar depressa demais sobre a frase seguinte, “ensinamo-las a parecerem vivas”. Ora, um despertar que é um parecer, é um despertar dentro de outro sono. Ensinamo-las a participar com palavras e actividades dentro da morte onde fingimos que vivemos. Despertar é parecer vivo, e “nós fazemos essa transição uma centena de vezes por dia, como se fossemos golfinhos desprovidos de vontade própria, mergulhando e regressando à superfície (…) passamos metade da nossa vida desperta e toda a nossa vida adormecida em águas privadas, inúteis, digo. Sem valor, poderia acrescentar – até alguém trazer a sua riqueza à superfície, para a cidade de olhos bem abertos, sob uma forma que as pessoas consigam utilizar.” Mesmo acordados mantemo-nos nas águas privadas, nesse outro sono, inútil como diz Dillard. Só partilhada na cidade de olhos bem abertos, é que uma riqueza se reconhece como tal.
Nos textos de Dillard há uma primazia da visão, mas uma visão que só tem valor porque nomeada, porque a preservamos e damos a ver através da língua. “Todas as coisas para as quais não temos palavras se perdem.” Quer isto dizer que as imagens não preservam as coisas? Sem a leitura, sem a interpretação, todas as imagens estão perdidas. “A mente – a cultura – tem duas pequenas ferramentas, a gramática e o léxico (…) com estas duas coisas, lançamo-nos sobre os continentes e fazemos todo o trabalho do mundo.” Para Annie Dillard ver não é uma mera faculdade dos sentidos, mas a possibilidade de uma revelação, de uma intervenção vertical, que lhe ilumina o caminho. Estas revelações, nunca são meras visões de uma exterioridade, mas um rasgão, por vezes no fluxo da sua consciência, que a fecha em si mesma, por outras no tecido do mundo, que numa proliferação infinita encobre um silêncio ensurdecedor. A um infinito contrair do divino contrapõe-se uma infinita multiplicação da vida. Dillard vive estirada entre estes dois afastamentos. O dogma cristão está sempre presente, principalmente quando parece não falar nele. Quando descreve a beleza de uma floresta, com a precisão de uma bióloga, atenta às mais ínfimas diferenças, nunca se abandona por completo a essas manifestações, mas fá-lo com uma vocação dialéctica, com um pendor “protestante” que lembra último verso do poema de Yeats “porque a Primavera não chega./ Nem sabemos que o que nos inquieta o sangue,/ é apenas anseio pelo túmulo”. Thoreau dizia que não é o que olhamos que importa, mas o que vemos, esta é a bifurcação onde se separam os dois escritores. Annie Dillard, em “ensinar uma pedra a falar”, fala-nos de uma natureza onde não encontra nenhum apoio: “Somos estrangeiros e peregrinos, pontos macios nas rochas. Já passearam pela praia e viram onde as aves pousaram, andaram e levantaram voo; os seus rastos começam na areia, continuam, e de repente terminam. Os nossos rastos fazem o mesmo: mas nós vamos para baixo. E ficamos lá em baixo.” Por mais brilhantes e minuciosas que sejam as anotações de Dillard, o seu olhar não procura o encontro de uma novidade, ou, como dizia Emerson que em vez de trabalhar os sepulcros dos nossos pais encontremos uma relação original com o universo, o seu tema não é a natureza, mas um esforço de descobrir sinais no seu caminho espiritual.
Nos textos reunidos em “ensinar uma pedra a falar” a Natureza é um campo abandonado, um lugar desencantado, belo, exuberante, mas tecido por um silêncio e um tremor que levam a autora quase sempre ao encontro de uma tensão insuportável. “A imagem da fecundidade e dos seus excessos e das pressões do crescimento e dos seus acidentes não é, evidentemente, diferente da imagem que há muito acalento do mundo como uma textura intrincada de uma bizarra variedade de formas. Só que agora as sombras são mais profundas. (…) não reconheci que é a morte que está a fazer girar o globo.” É certo que a força pulsional da vida nos ultrapassa, nos submerge, que é demasiado optimista num desmesurado querer-se a si mesma. Mas esta força que se multiplica também se devora e canibaliza impiedosamente. Dillard diz, num pequeno texto sobre o ambiente, que esta destruição da vida por ela própria só seria uma tragédia se estivessem tão vivos como nós. Para ela é uma prova de fé. Em toda a sua observação da natureza nunca abandona o vínculo de ter uma dignidade superior ao mundo. No texto sobre o eclipse, que me parece o mais rico de intuições e descobertas, vive uma experiência mística, de rapto, de “morte” como diz no seu arranque. O texto é engenhosamente bem construído, e leva-nos num crescendo através da vivência do que poderíamos chamar um momento iluminado. Se dúvidas houvesse das suas posições religiosas, no segundo texto, “uma expedição ao pólo”, mostra-nos que o seu abandono da igreja não se deveu a uma perda de fé, mas a uma desilusão com a comunidade, precisamente por esta lhe parecer pouco religiosa. Nesse texto coloca lado a lado o seu fascínio pelos exploradores polares, pela sua bravura e determinação, e o desencanto com a pusilanimidade dos crentes. Se abandonou a comunidade foi apenas para se entregar com maior fervor à procura do sublime que via nos exploradores. Mas a sua admiração por quem se entregava a uma morte certa, vem de uma ascese puritana, é Plotino quem a guia na sua paixão pela solidão. Platonismo bem delineado num dos últimos capítulos onde descreve o seu abandono do navio e o avançar pelo gelo adentro, numa experiência da morte digna de santa Teresa.
O que procuro mostrar é que o esforço de a colocarem na esteira dos chamados nature writers, reduz a leitura a um valor aproximativo, onde basta falar da natureza, para ser um escritor da natureza, mas deixa de lado o cerne dos seus textos, que não é a natureza, mas a sua experiência religiosa vivida junto da natureza. A sua posição moral força muitas vezes a leitura dos acontecimentos. No último parágrafo de “viver como doninhas” a tradução portuguesa suaviza o tom de prédica do autor ao transformar um “tu” num “nós”. Uma tradução mais literal seria: “Penso que seria bom, adequado, obediente e puro, segurares a tua única necessidade e não a largares, pendurares-te nela, coxear, onde quer que ela te leve. Então, nem mesmo a morte, para onde vais independentemente da forma como vives, te pode separar. Agarra-a e deixa que ela te agarre mesmo no alto, até que os teus olhos se queimem e caiam; deixa que a tua carne almiscarada caia em pedaços, e que os teus próprios ossos se desprendam e se espalhem, soltos pelos campos, pelos campos e pelos bosques, com ligeireza, sem pensar, de qualquer altura, tão alto como as águias.”
Dillard procura Deus debaixo das pedras, ou melhor, questiona repetidamente, o porquê deste alongar-se da vida sobre a terra, como quem quer por força conhecer o plano divino. É uma teóloga, não uma naturalista, e os seus livros ganhariam mais se fossem tratados como o fazem algumas comunidades religiosas do seu país, que, ao fazerem uma exegese do texto, não se perdem nas descrições momentâneas da exuberância natural. Todas as suas notas são pesquisas sobre questões metafísicas fundamentais, o que é que fazemos exilados neste mundo, porquê este eterno perecer da vida em vez do nada?
Tanto em Emerson como em Thoreau a natureza é onde o homem pode descobrir aquilo que lhe é próprio, onde encontra uma harmonia, uma “kinship of spirits”. Em “ensinar uma pedra a falar” isto nunca acontece. Mesmo quando se mostra uma apaixonada da natureza, a obsessão pela verdade, nunca a deixa entrar num jogo livre com a mesma, mas atravessa-a com o ressoar da morte, que as montanhas como grandes sinos reverberam, nos seus ouvidos. O seu caminho é o oposto de Thoreau, para quem a natureza dava revelações positivas do espírito, em Dillard o caminho é o da ausência. Vive crucificada entre um “desperdício de vida” e um plano transcendente impossível de perscrutar. Se por um lado nos consegue mostrar com bastante eficácia a posição do homem como um ser estranho sobre a terra, por outro escapa-lhe o encadeamento soberano do corpo e do movimento. Flaubert disse-nos que a observação procede sobretudo pela imaginação, a sua é habitada pelo evangelho, “As raposas têm covis, e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça.”
As aparências fogem da sua tenaz metafísica. Baudrillard diz no seu diário: “a aparência, como a frescura, é uma paixão. Há uma obsessão da verdade, mas uma paixão da aparência.” Abordar a ductilidade e ambiguidade da aparência com o rigor da verdade é obrigá-la a caber num molde que não lhe convém. Dillard, parece-me que não é num estado de paixão que descobre o mundo das aparências, mas de convalescência, como um espírito ferido que vasculha por uma saída. Para Baudrillard as aparências descobrem-se vivas quando os sentidos se multiplicam, são felinas, nunca se entregam a uma sabedoria que as força, ainda no seu diário escreve a seguinte entrada: “Uma mobilidade maravilhosa e encantadora, uma rapidez aérea: o gato. Toda a sedução é felina. É como se as aparências começassem a funcionar sozinhas, a entrelaçarem-se sem esforço. Ser felino das aparências. Nada se desenlaça, tudo se encadeia. Porque o felino não é senão o encadeamento soberano do corpo e do movimento.”