No início deste mês, uma mulher chamada Daniela, de 36 anos, em plena luz do dia, foi brutalmente e fatalmente atropelada pelo ex-namorado. Ao contrário do que muitas vezes acontece, esta mulher tinha consciência do perigo que corria. Não desvalorizou o sistema. Apresentou queixa e foi-lhe feita a devida a avaliação de risco, fator importante para a promoção da segurança das vítimas.
Curiosamente, a classificação atribuída foi de risco baixo. Isto apesar de se tratar de um agressor que não só tinha sido anteriormente condenado por matar outra mulher à facada, como contava já com uma acusação de VD, pouco tempo depois de ser colocado em liberdade.
Não podemos ignorar que este é um fenómeno complexo, com uma resposta complexa. Muito tem sido feito e é importante reconhecer o trabalho fundamental de tantos homens e mulheres, ao longo dos anos, por entre inúmeros desafios, no combate a este flagelo. E, aqui, não me refiro apenas aos operadores diretos do sistema de prevenção e proteção. Refiro-me também a todos nós, cidadãos, que conscientes do nosso papel, somos cada vez mais interventivos e críticos de uma cultura de tolerância e impunidade que tem ensombrado a prática deste crime. Quero acreditar que a redução paulatina do número de homicídios em contexto de violência doméstica, atesta isto mesmo, ou seja, uma aproximação crescente das leis vigentes daquela que é a realidade a que se dirigem, em particular no que se refere às mentalidades.
Todavia, é impossível ficar indiferente a este caso. O sistema falhou gravemente e, pior, perante alguém que nele depositou a sua confiança. Pelo que, exigir saber o que se passou, é o mínimo que podemos fazer. Até porque, infelizmente, alguns dos contornos conhecidos não andam longe de casos passados, que inclusivamente foram objeto de estudo e diagnóstico. Falo do trabalho desenvolvido pela Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Contexto de Violência Doméstica (EARHCVD), que desde 2016, com o intuito de corrigir erros e superar insuficiências, tem vindo a analisar os casos mais relevantes, adotando para o efeito relatórios, nos quais são elaboradas as mais diferentes recomendações dirigidas às mais diversas entidades. E aqui aumenta a frustração. Sem grande esforço, analisando brevemente os relatórios disponíveis, rapidamente percebemos que as deficiências são recorrentes. Aliás, em muitos dos relatórios, os especialistas envolvidos, chegam mesmo a reiterar, com indicação dos casos, as recomendações de relatórios anteriores.
Procurei as respostas às recomendações emitidas e confesso que não as encontrei. Da minha experiência, tendo em conta a pertinência e o impacto das análises efetuadas, tão importante são as recomendações, como o respetivo seguimento. Aspeto igualmente salientado no relatório de avaliação apresentado recentemente sobre o trabalho de seis anos desta Equipa. Ora, perante casos desta natureza e gravidade, esperar-se-ia não apenas maior visibilidade, como a exigência de respostas públicas devidamente fundamentadas por parte das entidades visadas, idóneas a permitir não apenas o importante acompanhamento, como a necessária responsabilização. Recordo que o Estado, em certas circunstâncias, pode mesmo ser responsabilizado por omissão.
A Daniela morreu. É hora de exigirmos, sem tréguas, maior empenho e ação de todos os que ocupam posições de liderança na proteção de quem diariamente vive no eminente risco de ser morto. Não ao silêncio. Ninguém duvida dos compromissos, falta agora o empenho.