Atualmente, todos nós precisamos da internet para nos sentirmos conectados com o mundo. É através dela que quase toda a gente se informa sobre a atualidade, que conversa com os amigos, que vê a família, que compra roupa, livros, que marca viagens, que paga as contas. No entanto, tal como também sabemos, o espaço digital não é cor-de-rosa. Aliás, tem recantos muito escuros que, felizmente, têm sido cada vez mais expostos. Não é preciso procurar muito para encontrar, através de plataformas como o Whatsapp, Telegram e Signal, grupos de venda de armas, drogas, notas falsas e pornografia infantil. Além disso, os grupos terroristas, nazis, de comércio ilegal de imagens (as chamadas nudes) e Fake News também proliferam. Tudo isto é possível graças às mensagens encriptadas. “Mensagens encriptadas são aquelas que as próprias aplicações garantem que só são decifradas entre o emissor e o recetor. É isso que as aplicações dizem nas suas políticas de privacidade”, começa por explicar Carlos Cabreiro, diretor da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade tecnológica da Polícia Judiciária (PJ).
Além disso, nestas aplicações, é possível escolher uma opção que permite que as mensagens enviadas desapareçam poucos segundos depois de serem lidas. “As plataformas são um veículo para estes crimes. Claro que as intenções de utilização não são sempre más, mas a verdade é que permitem a comunicação ponto a ponto e, por isso, são facilitadoras deste tipo de crime”, explica, sublinhando que estes crimes não existem apenas porque existem estas plataformas. “Os crimes existem noutros ambientes”, lembra.
Compra e venda de droga
Pedro não esconde que fuma canábis. Não se considera dependente, vê-o como uma forma de relaxamento e de “expansão”. “Sinto que ainda existe muito preconceito relativamente a estas drogas leves e não entendo o porquê. Fumar ajuda-me a gerir a ansiedade, a quebrar barreiras comigo próprio, a escrever as minhas coisas”, admite. Mas se antes lhe era mais complicado ter acesso ao ‘produto’ – tinha que pedir a um amigo ou se deslocar até um bairro –, agora, em 15 minutos, recebe o seu produto em casa. “Brinco muitas vezes com amigos dizendo que já existe UberWeed… Mas é verdade, só não tem esse nome”, conta. É através do Signal que contacta com o seu vendedor. “É tão simples… Mando uma mensagem e recebo o menu. É mesmo um menu. Encontras uma grande variedade de canábis – que vão das indicas às sativas – e, muitas vezes, também tens disponíveis cogumelos alucinogénicos e pastilhas de ecstasy”, revela. Por norma, as canábis são vendidos às cinco gramas que custam 40 a 50 euros. Já as pastilhas custam em média 10 euros cada.
Mas se há quem compre em pequenas quantidades, há quem compre para revender. Em maio, por exemplo, a PSP de Oeiras desmantelou uma rede de tráfico de droga que anunciava e vendia em grupos privados da rede Telegram, que permite grupos com até 200 mil pessoas e canais públicos com número ilimitado de inscritos. A investigação começou em maio de 2023 e culminou na realização de 40 buscas em residências, garagens e veículos, por todo o país. A primeira parte da investigação que visou a detenção do núcleo duro da organização – composto pelo cabecilha, colaboradores próximos e distribuidores de estupefacientes –, levou à detenção de sete homens, com idades compreendidas entre os 17 e os 36 anos. De acordo com as autoridades, a organização anunciava a droga – haxixe, cocaína, MDMA e liamba – em grupos privados da aplicação, “onde vários revendedores lhes adquiriam diversas qualidades e quantidades de narcóticos”, que eram enviadas através de serviços postais, depois de terem realizado os pagamentos correspondentes, feitos principalmente através da aplicação MBWay. Foram identificados clientes nos distritos de Castelo Branco, Évora, Faro, Guarda, Leiria, Lisboa, Vila Real, Viseu e na região autónoma da Madeira, visados na segunda fase da operação. Cinco suspeitos, com idades compreendidas entre os 22 e os 44 anos, foram detidos. Este tipo de negócios também são feitos muitas vezes através do Whatsapp.
Segundo Carlos Cabreiro, este tipo de investigações são sempre muito complexas. “Se estivermos a falar de comunicações que, por si só, estejam encriptadas e não haja possibilidade de acesso, falamos de vários métodos de investigação. Estamos a falar da internet, do ciberespaço. Tem as suas especificidades e características que se podem diferenciar das investigações comuns. Porquê? Porque há transnacionalidade, uma impossibilidade de se definir, muitas das vezes, a origem das comunicações, trata-se de uma prova muito técnica e muito complexa. Por isso é que se torna mais complicada a investigação nestes casos”, conta. Segundo o mesmo, o crime praticado com recurso a meios informáticos – a utilização da informática como potenciadora para a prática de crimes que já eram cometidos de outras formas –, tem crescido exponencialmente. “Até porque estamos a falar do uso massivo das estruturas de comunicação, de serviços a que recorremos na forma digital. É natural que a criminalidade e a atividade criminosa se desloque para essas plataformas”, garante.
Acesso fácil a armas
Além da droga, em março, uma investigação da RTL TVI mostrou como os jovens estão a comprar Kalashnikovs e outras armas de fogo em redes sociais como o Telegram ou o Snapchat. Nessa altura, houve vários tiroteios em Bruxelas. A televisão belga teve acesso ao número de telemóvel de um indivíduo que se encontra em prisão preventiva na sequência de vários assaltos. Segundo ele, o aumento de tiroteios em Bruxelas explica-se, nomeadamente, pela “facilidade com que os mais jovens obtêm armas através de aplicações de conversação”. “Há muitas pessoas que têm contactos e, por isso, basta contactá-las para conhecer uma pessoa que venda. O pagamento nem sequer é rastreável. Eles utilizam métodos para evitarem ser apanhados. Eu vi algumas AK-47 e algumas 9mm, a preços acessíveis”, admitiu. Os preços variam entre os 800 e 2500 euros. Segundo as autoridades belgas, os tiroteios são realizados principalmente pelos mais jovens. Alguns chamam-lhe “Geração GTA”, em referência a um jogo violento. O mesmo acontece no Brasil, onde o caso se afigura bem mais negro.
Roubo de imagens
No ano passado, Beatriz foi surpreendida ao saber que circulavam fotografias íntimas suas na internet. Foi um amigo que a avisou. “Um amigo ligou-me a dizer que havia fotografias minhas a circular em grupos de Telegram pagos. Não posso dizer que foi um choque para mim, porque já tinha tido conhecimento de outras histórias idênticas”, revela. No entanto, “nunca pensamos que nos vai acontecer a nós”. Depois de ter tido conhecimento, fez queixa na polícia, mas até agora “nada”. “Este tipo de crimes parece estar a aumentar. Ouço imensos relatos. Não percebo como é que a polícia não faz nada. Dão primazia aos crimes físicos, e estes? Não imaginam os danos psicológicos que ficam nas vítimas. Quando eu coloco fotografias nas minhas redes sociais ou envio imagens mais íntimas para alguém, não espero que as pessoas as possam utilizar como bem entenderem”, lamenta. De acordo com Carlos Cabreiro, também estes crimes têm aumentado. “Mesmo o cibercrime, as instruções, acesso ilegítimo, roubo de imagens, toda aquela panóplia de crimes associados à manipulação de e-mails, tem crescido. É essa a característica deste crime: com uma simples ação abarcam um elevado número de vítimas”, afirma.
Interrogado sobre aquilo que está a falhar, garante que “em termos de lei, na parte substantiva, nada está a falhar”. “Estamos a falar de crimes que estão previstos, que têm uma punição, que estão estabilizados, que têm uma correspondência com a maior parte dos países, porque em matéria de cibercrime, a maior parte dos países aderiram à ciberconvenção. Por isso, há aqui uma uniformização e uniformidade na forma como se analisam os fenómenos. A questão que se poderá colocar é que a nível das normas processuais penais há possibilidade de existirem outras ferramentas, outras capacidades de acesso à prova”, remata.