Dita a tragédia shakesperiana que a reputação é uma ilusão, um falsete: é a coisa mais fácil de ganhar sem qualquer mérito e também a coisa mais fácil de perder sem qualquer responsabilidade. Marcelo Rebelo de Sousa é exatamente o oposto. Granjeou a sua reputação (também) com talento e meteu-a no bueiro por sua culpa. Por sua tão grande culpa.
Certo é que chegou ao Palácio de Belém com a credibilidade em máximos históricos: benquisto pelas generosas sobras do Estado Novo (filho do governador de Moçambique escolhido por Salazar), Professor de Direito e estimado pelas elites académicas, popular nos seus comentários dominicais televisivos, de Professor Rebelo de Sousa a Celito, o Presidente da República tinha tudo para vencer e venceu, tinha tudo para ser recordista de popularidade em Belém e assim foi, tinha tudo para completar dois mandatos com louros e ainda sair levado em braços, num andor, com o povo a beijar o chão que pisava. Só que não. É vê-lo a despenhar-se nas sondagens. Catrapum!
Acontece que o seu prestígio foi inflacionado porque não dispunha de um verdadeiro caráter reto e firme que o sustentasse. Tinha uma áurea em seu redor, um mito pessoal contado e recontado (de inteligência fulgurante, enorme capacidade de trabalho, pouca necessidade de sono), mas o alicerce central ético sempre foi tímido. Há o episódio da vichyssoise ou a promessa furada de que nunca se candidataria à liderança do PSD (’nem que Cristo desça à Terra’) e um sem número de novelitas que sempre denunciaram o défice de fiabilidade e o colaram à intriga. Mas os créditos que firmou esfumam-se agora também por outras razões, da vaidade à imprudência.
Marcelo passou os mandatos sem controlar a sua logorreia, persistindo em tudo comentar, desde a bola a decotes, parecendo mais capaz de tirar as famosas marselfies, meter-se em calções de banho, provar petiscos e jogar raspadinhas do que em ser Chefe de Estado e o mais alto magistrado da nação, comandante supremo das forças armadas com o estrito dever de garantir o regular funcionamento das instituições e de defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa.
O escritor Artur Portela Filho resumiu a condição de Marcelo Rebelo de Sousa assim: «Um catedrático que não é catedrático, um jornalista que não é jornalista, um político que não é político». Só falta acrescentar ‘um Presidente que não é Presidente’.
E para coroar esta degradação da função só faltava mesmo este episódio das gémeas que, caso existisse em Portugal a figura da destituição do Presidente (impeachment) talvez lhe fosse aplicada. Claro que a soberba de Nuno, ‘seu filho’, o desdém e escárnio que revela pelo regime, pela assembleia da república, pelo escrutínio lembram facilmente o seu avô. Porém, ninguém é responsável nem pela conduta dos seus ascendentes nem pela dos seus descendentes. O que realmente enterra agora Marcelo Rebelo de Sousa é o o sacudir a água do capote para cima do seu filho, a falta de clareza quanto ao seu próprio grau de envolvimento neste processo, a longa suspeita que tem permitido que paire sobre a sua própria cabeça.
E a verdadeira tragédia que se abate sobre Portugal é que com a reputação de Marcelo conspurcada, conspurca-se também a credibilidade da democracia. Morre a nossa parte imortal, como diria o Otelo shakesperiano. Porventura para sempre.