MUNIQUE – Antes de cada jogo há a tentação de adivinhá-lo. Olhei para este Espanha-França e vi, à distância, um confronto entre duas formas de encarar o jogo, sendo que a Espanha, até ao momento a única equipa que trouxe algo de verdadeiramente entusiasmante ao futebol excessivamente tático deste Europeu, tem uma filosofia de chegar ao golo dando aos seus intérpretes a liberdade de inventarem o caminho enquanto a França, diminuída pela falta de chama de Mbappé, a contas com o nariz partido logo no segundo encontro, e de Griezmann (desta vez nem foi titular), incapaz de ter influência no balanço atacante do conjunto, se impôs aos adversários que encontrou até aqui pela impressionante força física e por uma arrogância própria de quem está habituada a lidar com momentos decisivos como era este de Munique.
Allianz Arena, 21h00 CET, como se diz oficialmente. Cá muito no alto, estou no meu posto. E como os espanhóis têm caráter, «caray!». Esperamos deles atitude e respondem caindo sobre um opositor que deu a Rabiot a responsabilidade que vinha sendo de Griezmann. De cada vez que Cucurella toca na bola ouve-se um coro de assobios. Não será certamente pelo seu cabelo, aqui para mim sumamente ridículo, que o faz parecer carregar com uma palhota na cabeça. Atiram-lhe as culpas do penalti que o árbitro do Espanha-Alemanha se recusou a marcar quando a bola lhe acertou na mão? E não são apenas alemães que o apitam. Os franceses ajudam. Prefeririam estar aqui a defrontar os germânicos? Talvez sim, se pensarmos que eram mais previsíveis. Nove minutos: Kolo Muani responde de cabeça ao centro de Mbappé e faz 1-0. Os centímetros a mais fazem o seu primeiro estrago. A situação coloca-se a favor do seu jogo mais recuado que procura disparar as flechas negras do contra-golpe. Sem máscara, Mbappé parece livre de um espartilho. Se iniciara a partida no meio campo contrário, a Espanha agora toma-o de assalto. E sujeita-se. Mas, depois, há aquele Duende de Lorca, o tal que não se explica, que parte da planta dos pés e toma conta do corpo dos predestinados. Lamine Yamal, o menino de dezasseis anos que, como diria Nelson Rodrigues, teria de ir de mão dada com o pai para ver um filme da Brigite Bardot, tira dois infelizes do caminho e marca um golo maravilhoso, provavelmente o mais bonito de todos até aqui neste Europeu embaciado. Não é preciso esperar mais de quatro minutos para que Dani Olmo seja, igualmente, invadido pela alma do Duende, dobrando defesas e obrigando ao auto-golo: 2-1! Com ponto de exclamação, sim, é tão merecido o ponto de exclamação. Que Espanha esta, tão vermelha, tão garrida, tão alegre que parece uma Cármen sedutora dessa Sevilha onde o calor faz ferver o sangue nas veias. «Eres de PM!», cabendo-vos a vocês traduzir o PM para algo que não convém escrever. Presa às fragilidades que já lhe tínhamos adivinhado e que Portugal esteve muito longe de saber aproveitar, a França debate-se, estrebucha, mas é inócua. Vai para o intervalo a perder com a naturalidade que advém de ter sido incapaz de dominar o estilo malicioso de jogadores que aliam a habilidade à capacidade do golo.
Mais uma vitória da alegria
Didier Deshamps é treinador da França desde 2012. No Mundial do Brasil foi eliminado pela Alemanha, campeã do mundo dessa edição, e no Euro-2016 perdeu a final de Paris frente a Portugal. Convencidos de que tinham sido derrotados por um momento pouco comum de infelicidade naquele pontapé de Éder que, para nós caiu do céu aos trambolhões, os dirigentes da federação francesa mantiveram-no no cargo. Desde esse Europeu até este, passando por dois Mundiais, a França é, tirando a seleção nacional, a equipa que mais vezes vi ao vivo (talvez a par da Inglaterra) em todas as competições – como digo e repito, não uso a televisão para trabalhar, apenas como entretenimento porque o que me mostra não é o que preciso de ver se pretender escrever uma crónica. Com mais ou menos brilho tem sido um conjunto impossível de derrotar (em 2020 foi eliminada nas grandes penalidades, tal como perdeu a final do Qatar da mesma forma), e poucas vezes a vi tão atrapalhada como agora frente à Espanha. É preciso regressar à decisão de Lusail e recordar a primeira parte da Argentina para fazer a comparação. E, ano e meio depois, ainda todos se lembrarão o que aconteceu. Não, não se despreze a França. Os «olés» vindos das bancadas espanholas eram extemporâneos e injustificados. Não seria de repetir a ingenuidade do Quixote e mais valia seguir a sabedoria popular do Sancho Pança: nada de ver moinhos onde estavam gigantes. Gigantes que foram gigantes nas duas últimas finais do Campeonato do Mundo, uma prova de grandeza incomparável que deixa a anos-luz esta íntima discussão do Velho Continente.
Eis portanto a França mais comprida, metida dentro do meio campo do adversário, e a Espanha a exigir mais dos seus pontas, sobretudo de Nico Williams, trocando Navas por Vivian e puxando Nacho para a lateral direita querendo com isso ganhar mais quilos e centímetros no centro da defesa. Era chegada a hora de Griezmann. E com ele Camavinga e Barcola. Eram, à moda dos inimigos de Luís XIV, suspiros de França que ansiava por liberdade. Um largar de amarras para que se jogasse o jogo pelo jogo. E os espanhóis iam ficando cada vez mais longe da baliza de Maignan.
Estamos a vinte minutos do fim. Sobre a relva procuram-se espaços mas o martelo francês vai batendo na bigorna com crescente insistência. Os espanhóis vão trocando a bola quando a têm e reforçam a sua atitude agora mais conservadora com a troca de Olmo por Merino e Morata por Oyarzabal. Giroud será a última aposta de Deshamps para felicidade do topo sul da Arena de Munique. Se a França tem pressa, a Espanha não tem. Ou seja, para uns e para outros os minutos não valem o mesmo. Correm como grãos de areia pelas mãos dos franceses e fecham-se nos pés do espanhóis com um valor inominável. Uma guerra de relógios com cada vez mais escassas situações de perigo. Mbappé foge, parece ter as asas de Mercúrio nos pés, mas o seu tiro sai por alto, inofensivo. Os meninos Yamal e Nico saem para os aplausos. Uma última força transmitida à custa de gargantas pelos fiéis que envergam camisolas azuis e ainda crêem. «Que viva la España!», berra-se do lado norte. Que viva pois esta Espanha de suprema alegria e os seus cavaleiros vermelhos. Seis jogos e seis vitórias. Berlim fica a cerca de 600 quilómetros de distância. Será a minha última viajem.