Tecnologias nucleares

Torna-se então essencial compreender o efeito que estas tecnologias têm na nossa vida, assim como as áreas onde elas sorrateiramente nos impactam.

As tecnologias nucleares, frequentemente associadas a imagens de destruição em massa e catástrofes, são na realidade uma das áreas mais revolucionárias e em metamorfose da ciência moderna.

Desde o seu desenvolvimento a partir do século XX[1] , foram várias as aplicações em áreas como a imagiologia, alimentação, e indústria. Por exemplo, mais de 500 milhões de exames imagiológicos são realizados todos os anos na União Europeia[2] .

Torna-se então essencial compreender o efeito que estas tecnologias têm na nossa vida, assim como as áreas onde elas sorrateiramente nos impactam.

Tecnologia nuclear médica

O setor no qual as tecnologias nucleares são vastamente utilizadas é, de longe, o setor médico. As tecnologias nucleares têm um papel fundamental em áreas como a medicina, por exemplo para imagiologia radiológica, na medicina nuclear, na radioterapia e na prevenção de contágio de doenças animais em humanos.

A imagiologia radiológica utiliza radiação-X em exames como tomografias computorizadas, mamografias, radiografias, etc. Por ano, 500 milhões deste tipo de procedimentos são realizados na União Europeia (UE), o que torna esta área medicinal de aplicação das tecnologias nucleares a mais comum.

Já para a medicina nuclear, são utilizadas substâncias radioativas para diagnosticar maioritariamente doenças oncológicas, mas também cardiovasculares, entre outras. Na UE, cerca de 10 milhões destes procedimentos são fornecidos anualmente aos pacientes. [2]

A radioterapia pode consistir em raios-X de elevada energia, partículas carregadas, ou outras fontes radioativas e desempenha principalmente a função de tratamento para cancro, mais especificamente matando as células carcinogénicas, mantendo as células normais saudáveis. A radioterapia é administrada, aproximadamente, 1.5 milhões de vezes, ao ano, na Europa, e é das tecnologias mais eficientes para a eliminação de células cancerígenas.

Fig. 1 Outra forma de detectar  cancro é conjugar uma TAC/CT (esquerda) com uma tomografia por emissão de  positrões (PET) (meio) para obtenção de uma imagem com maior contraste (esquerda).

Apesar de poder não parecer tão relevante, as tecnologias nucleares são essenciais para a prevenção do contágio humano de doenças provenientes de animais. Através de técnicas nucleares, é possível detetar mutações de doenças, como a febre das aves, antes de estas gerarem surtos em humanos. Pode ser, também, utilizada radiação para prevenir doenças derivadas de insetos para esterilizar populações macho, por exemplo, de mosquitos de modo a diminuir a transmissão de vírus como o Zika[3].

Apesar dos variados benefícios das tecnologias nucleares aplicadas à medicina, tais têm aumentado a exposição da população à radiação. Na UE, a medicina é responsável por praticamente metade da exposição à radiação dos seus cidadãos.

Figs. 2 e 3 De forma a induzir doses maiores num tumor sem afetar as áreas circundantes é possível usar uma combinação de feixes. Dependendo do tipo de radiação usada e da sua intensidade, a maioria da energia é dissipada para uma certa distância. Ao focar vários feixes, vindos de direções diferentes, à distância correta, é possível minimizar a exposição nos restantes tecidos. 

Deste modo, é essencial que haja organizações que regulem a qualidade dos isótopos radioativos e radiação utilizada na medicina. Os EUA têm, por exemplo, a Comissão de Regulamentação Nuclear dos Estados Unidos (U.S. NRC)[4] e uma parceria de mais de 18 milhões de dólares com a Agência Internacional para a Energia Atómica (IAEA), desde 2010, para o fornecimento de utilizações pacíficas da energia, ciência e tecnologia nucleares. Já na União Europeia, existe a Euratom (Comunidade Europeia da Energia Atómica), à qual pertencem ainda o Reino Unido e a Suíça, que auxilia no controlo de qualidade desta área. Ainda tratando da UE, foi apresentado, em 2021, a Strategic Agenda for Medical Ionising Radiation Applications (SAMIRA), um plano de ação que pretende garantir que os cidadãos da UE tenham acesso a tecnologias radiológicas e nucleares de elevada qualidade, com o maior nível de segurança.

Hoje em dia, equipamentos médicos são utilizados em basicamente todas as intervenções médicas. Sendo assim, a segurança de utilização destes materiais é essencial para o bom funcionamento do sistema de saúde. Responsável por 40%[5] dos processos de  esterilização em equipamentos de uso único, a esterilização com recurso a radiação é essencial para garantir a segurança de grande parte dos equipamentos médicos.

Este método consiste na utilização de raios gamma, X[6] ou tanto radiação beta como alfa com o intuito de criar radicais livres nas células de patógenos presentes nos equipamentos para que haja danos no seu DNA, que causam a sua erradicação. Como alternativa ao uso de temperatura ou de substâncias químicas, a radiação proporciona a possibilidade de esterilizar equipamentos, mesmo depois destes estarem selados[7], o que minimiza riscos de contaminação causados pelo empacotamento.

Tecnologia Industrial e Comercial

Com os constantes desenvolvimentos tecnológicos que ocorrem nas fábricas e indústrias, a crescente quantidade de produtos disponíveis, assim como a constante manutenção da qualidade, surge uma correlação entre o uso de tecnologias nucleares e a inovação.

A manufatura moderna tem sucesso quando os produtos conseguem ser produzidos em grandes números, com grande qualidade e baixo custo. Para tal torna-se impossível realizar controlo de qualidade sem instrumentação rápida e precisa. Adicionalmente, pode ser necessário mensurar propriedades como densidades, que tradicionalmente requerem contacto com as matérias primas/produtos. Contudo, como a radiação penetra materiais com densidades médias/baixas, é possível realizar medidas com radioisótopos, sem interferir com o produto, e acima de tudo, sem que ele pare de se mover[8].

Fig. 4 Linha de montagem de alta velocidade para bebidas de lata. O uso de sensores com recurso a tecnologias nucleares aumenta a eficiência

Por exemplo, a atenuação de radiação gama pode ser usada para saber se uma lata de refrigerante está cheia. Se usarmos uma fonte de Césio-137, que emite um fotão gama com 662 KeV, e um sensor, podemos calcular que, após serem percorridos 6.5cm (largura de uma lata de água com gás) a intensidade da radiação deve diminuir cerca de 45%[9].

Outra aplicação vital baseia-se na deteção de fugas em gases e canalizações. Se forem introduzidos radioisótopos que emitam radiação bloqueada pelo metal presente em canalizações (eletrões energéticos), como é o caso do Sr-90, é possível saber remotamente se uma fuga ocorreu[8][10].

No que toca à adaptação de materiais, é possível usar radiação para unir polímeros e torná-los resistentes ao calor. O Cloreto de Polivinil (PVC) cujas ligações foram induzidas com radiação tem maior resistência a ácidos e altas temperaturas, quando comparado com os tratamentos habituais[8]. Até a vulcanização da borracha dos pneus recorre cada vez mais a esta tecnologia.

E como se tudo isto não bastasse, sempre que vamos a um aeroporto, temos toda a nossa bagagem vistoriada com recurso a Radiografias, ou tomografias computadorizadas (3d), e de seguida (nos aeroportos mais modernos) somos  expostos a detetores de Backscatter de Raios-X[11][8]. Portanto, no que toca à área da segurança e identificação de substâncias ilícitas, as tecnologias nucleares são fulcrais.

Por fim, como já era de esperar, o setor energético beneficia de uma fonte de energia barata a longo prazo, limpa, e acima de tudo, promotora da independência energética, como é o caso da energia nuclear[12].

Fig. 5 A energia nuclear é essencial para uma transição energética, independente das fontes fósseis.

Tecnologia na alimentação

De longe, o setor que mais sorrateiramente beneficia do uso de tecnologias nucleares, é a agricultura.

Segundo a Agência internacional para a Energia Atómica (IAEA) e a Agência da Agricultura das Nações Unidas (FAO), houve a implementação recente, em Belize, de tecnologias nucleares para a prevenção da transmissão de zoonoses (doenças animais), com a implementação de pequenos centros de testes de Reação em Cadeia da Polimerase (PCR). Estes foram eventualmente aproveitados para os testes PCR da COVID-19[13].

Para além do mais, uma técnica de controlo de pestes (SIT), amiga do ambiente, e que não envolve qualquer pesticida, tem sido usada como complemento à indução de mutações em espécies indesejadas. Esta baseia-se em esterilizar insetos com radiação gama e libertá-los em zonas afetadas por pragas[14]. A inabilidade de reprodução erradica parte das populações infestantes, e também pode ser usada como controlo de espécies animais invasoras. Este foi o caso do Ecuador, que usou a SIT para erradicar a Mosca da Fruta Mediterrânica[13].

Fig. 6 Esterilização de insetos invasores permite erradicar pragas sem uso de pesticidas, que são prejudiciais para o ambiente

Há no entanto usos verdadeiramente peculiares. Em zonas onde ocorreram acidentes nucleares, a presença de isótopos instáveis nas rochas permitiu identificar a saúde e ritmos de erosão dos solos. Outro excelente exemplo é a introdução no Benin de Fertilizantes à base de  isótopos de Nitrogénio instáveis, que possibilitou a contabilização da quantidade de fertilizante usado pelas plantas locais, assim como a optimização da rega e uso destes fertilizantes. Em 10 anos (2009-2019), a produção de soja acabou por quadruplicar[13][14].

Fig. 7 Podem ser usadas tecnologias nucleares para o controlo de qualidade dos alimentos

Evidentemente, há muitas outras técnicas, como a indução de mutações benéficas em plantas para combate aos efeitos das secas[15], e também a esterilização de alimentos, feita com Raios-X[13], que promovem o nosso bem estar e sustentabilidade.

Reatores de Fissão nos Submarinos e outras embarcações

Com a crescente indústria naval surgem inúmeros desafios, entre eles, a necessidade de manter embarcações no mar sem grandes pausas para reabastecimento. Embora o abastecimento de recursos alimentícios em alto mar seja uma prática um tanto comum, no que toca a combustível, o processo é bastante mais complicado. Portanto, para embarcações como porta-aviões, submarinos e quebra-gelos, o uso de energia nuclear é a  solução.

Atualmente, há cerca de 160 embarcações, com 200 pequenos reatores, em operação[16], sendo a maioria submarinos. A World Nuclear Association estima que a escassez ou proibição de combustíveis fósseis impulsionará o uso de reatores em grandes embarcações com fins comerciais, especialmente cargueiros.

Fig. 8 Quebra gelo nuclear Russo

Tal não acontece hoje pois o diesel marítimo é barato e existe em abundância. Não obstante, as emissões de NOx, SOx, CO, Partículas suspensas no ar com menos de 2.5 micrómetros de diâmetro (PM 2.5, sobretudo em cruzeiros) e CO2 (a indústria marítima é responsável por 3% das emissões globais[17][18]), aumentam todos os anos.

Embora a redução das emissões fosse, por si só, uma causa nobre para encontrar uma alternativa, os principais fatores que inviabilizam esta opção são o custo (um navio custa entre 10 -100 M€ e os reatores adequados 50-150 M€)[19], e as restrições ao acesso a portos, infundamentadas.

Fig. 9 Reator nuclear modular. A tecnologia levará décadas até ser comercialmente viável, no entanto pode vir a ser uma alternativa aos motores a diesel/gás natural liquefeito

Efetivamente, o custo desta tecnologia não está nada adaptado ao setor comercial, no entanto, com as metas de redução da totalidade das emissões até 2050[20] e a evolução/produção em massa de small nuclear reactors[21], talvez esta mudança não esteja tão longe de ocorrer.

Conclusão

Embora por vezes surjam desafios para o seu uso comercial, as tecnologias nucleares desempenham um papel fundamental em diversas áreas que nos afetam diretamente. O crescimento deste setor depende principalmente da criatividade investigativa, que com ela acarreta novas aplicações e o aumento da eficiência dos métodos já existentes. Não obstante, serão necessários pesados investimentos para que o seu impacto, principalmente o ambiental, se faça sentir.

Referências

[1] U.S. Department of Energy. “The Development of Nuclear Energy for Peaceful Applications.” Office of Nuclear Energy, Science and Technology, Washington, D.C. 20585, April 21, 2011, p. 7. https://www.energy.gov/ne/articles/history-nuclear-energy.

[2] European Commission. “Commission Staff Working Document on a Strategic Agenda for Medical Ionising Radiation Applications (SAMIRA).” Brussels, February 5, 2021, SWD(2021) 14 final, p. 12. https://energy.ec.europa.eu/document/download/6c24f1a0-9296-48e1-8b13-cd479f1c1220_en?filename=swd_strategic_agenda_for_medical_ionising_radiation_applications_samira.pdf.

[3] Chen, Janet. “Harnessing the Benefits of Nuclear Technology to Improve Human Health.” United States Department of State, December 13, 2021, www.state.gov/harnessing-the-benefits-of-nuclear-technology-to-improve-human-health/.

[4] “Medical Uses of Nuclear Materials.” U.S. NRC (United States Nuclear Regulatory Commission), www.nrc.gov/materials/miau/med-use.html.

[5] “Medical Sterilization.” International Atomic Energy Agency, www.iaea.org/topics/medical-sterilization.

[6] “Biocompatibility Protocols for Medical Devices and Materials.” ScienceDirect, www.sciencedirect.com/book/9780323919524/biocompatibility-protocols-for-medical-devices-and-materials.

[7] “Radiation Treatment for Sterilization of Packaging Materials.” ResearchGate, www.researchgate.net/publication/222742662_Radiation_treatment_for_sterilization_of_packaging_materials.

[8] Waltar, A. E. (2016). “The Medical, Agricultural, and Industrial Applications of Nuclear Technology.” pgs (29-32) http://large.stanford.edu/courses/2016/ph241/lsm2/docs/waltar.pdf.

[9] National Institute of Standards and Technology (NIST). “X-ray Mass Attenuation Coefficients – Water.” NIST, https://physics.nist.gov/PhysRefData/XrayMassCoef/ComTab/water.html. Accessed June 14, 2024.

[10] Laboratoire National Henri Becquerel (LNHB). “Table of Radionuclides – Sr-90.” LNHB, http://www.lnhb.fr/nuclides/Sr-90_tables.pdf. Accessed June 14, 2024.

[11] United States Environmental Protection Agency (EPA). “Radiation and Airport Security Scanning.” EPA, https://www.epa.gov/radtown/radiation-and-airport-security-scanning. Accessed June 14, 2024.

[12] International Atomic Energy Agency (IAEA). “Radiation Protection and Safety of Radiation Sources: International Basic Safety Standards.” IAEA, https://www-pub.iaea.org/MTCD/publications/PDF/P1772_web.pdf. Accessed June 14, 2024.

[13] International Atomic Energy Agency. “Five Ways Nuclear Technology Is Improving Agriculture and Food Security.” IAEA, 2023, https://www.iaea.org/newscenter/news/five-ways-nuclear-technology-is-improving-agriculture-and-food-security.

[14] Lee, Sunmi. “Nuclear Agriculture.” March 12, 2016. Coursework for PH241, Stanford University, Winter 2016, http://large.stanford.edu/courses/2016/ph241/lsm2/.

[15] Singh, B., Singh, J., and Kaur, A. “Applications of Radioisotopes in Agriculture.” Int. J. Biotechnol. Bioeng. Res. 4, 3, (2013).

[16] World Nuclear Association. “Nuclear-Powered Ships.” World Nuclear Association. Accessed June 13, 2024.

[17] Yuan, Jinliang. “Air Pollution from Marine Diesel Engines and Its Application to MET [Maritime Education and Training].” 1998, cap. 2, pgs 5-9. https://commons.wmu.se/cgi/viewcontent.cgi?article=2068&context=all_dissertations.

[18] SINAY.AI. “How Much Does the Shipping Industry Contribute to Global CO2 Emissions?” September 22, 2023. Accessed June 13, 2024. https://sinay.ai/en/how-much-does-the-shipping-industry-contribute-to-global-co2-emissions/.

[19] Gilani, Zainab. “Will Small Modular Reactors Surpass Regulatory and Supply Chain Hurdles to Fill the Need for Stable, Baseload Power?” https://www.cleantech.com/will-small-modular-reactors-surpass-regulatory-and-supply-chain-hurdles-to-fill-the-need-for-stable-baseload-power/.

[20] United Nations. “Climate Action.” Accessed June 12, 2024. https://www.un.org/en/climatechange/net-zero-coalition.

[21] “Advanced Nuclear: A Climate Tech Comeback Story.” GreenBiz, www.greenbiz.com/article/advanced-nuclear-climate-tech-comeback-story.

Referências das figuras

fig .1

https://www.researchgate.net/figure/PET-CT-and-PET-MRI-images-of-56-y-old-patient-with-glioblastoma-multiforme-patient-5-on_fig3_45365993

fig .2

https://ro-journal.biomedcentral.com/articles/10.1186/1748-717X-4-30

fig .3

https://www.researchgate.net/figure/Depth-dose-curves-for-radiotherapy-Dose-distributions-as-a-function-of-depth-in-water_fig1_330932948

fig .4

fig .5

https://www.mpr.com/markets/nuclear-technologies/

fig .6

https://www.fao.org/newsroom/story/five-ways-nuclear-technology-is-improving-agriculture-and-food-security/en

fig .7

https://www.state.gov/peaceful-uses-of-nuclear-technology-a-powerful-tool-for-a-better-world/

fig .8

https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.arctictoday.com%2Frussian-nuclear-powered-icebreaker-will-make-5-north-pole-voyages-summer%2F&psig=AOvVaw3xAv3LxfWcBAfUMDC0zi10&ust=1718463714845000&source=images&cd=vfe&opi=89978449&ved=0CBEQjRxqFwoTCKifrayu24YDFQAAAAAdAAAAABAJ

fig .9

https://www.greenbiz.com/article/advanced-nuclear-climate-tech-comeback-story