As eleições legislativas francesas podem bem ser a amostra de um novo paradigma desafiante, o confirmar, também, de uma nova tendência na esquerda como acontece na direita. Aparentemente a política está a regressar ao ocidente, pois estão a surgir formulações de esquerda e direita que parecem não estar controladas pelo sistema político dominante, aquilo que se designa como a democracia liberal.
Essa esquerda e direita têm visões radicalmente distintas sobre a organização e prioridades da sociedade, mas partilham um aspecto essencial, a rejeição do novo liberalismo, o liberalismo económico e o seu poder transnacional e globalista.
O poder hegemónico deste liberalismo na Europa que se tem consolidado desde os anos 80 está bem patente nas políticas que se submetem ao primado dos mercados em detrimento das pessoas e da submissão dos políticos do sistema a um capitalismo amoral, predatório e sem escrutínio.
A esquerda foi manietada durante estas décadas e convencida a adoptar novas causas que substituíram a luta de classes, a crítica do capitalismo e a defesa do trabalhador. Nessas novas causas encontramos a questão LGBT, o ocidente racista e colonialista, o trans e o migrante… Este universo fez a sua fortuna na academia, nos média e no pseudointelectual das artes, mas não entre o cidadão comum. Já as propostas de uma nova direita e a sua denúncia de que não é possível conceber um homem decente sem os pilares como a nação, a civilização, a tradição, a memória e a continuidade histórica, alcançaram um público mais vasto.
Se no presente a economia é tudo, a verdade é que o ser humano tem necessidade de um chão, de raízes culturais e civilizacionais e dos respectivos vínculos. A nova direita tem respondido isoladamente a essas necessidades que o liberalismo teima em destruir, pois são inimigas do grande consumo.
Este poder hegemónico do hiperliberalismo não tem um único rosto, pois inclui conservadores e liberais, socialistas, sociais-democratas e esquerdistas, como acontece em Portugal, que defendem praticamente o mesmo em todos os planos, simulando apenas divergências para fins eleitorais.
Os últimos sessenta anos no Ocidente foram dominados pelo grande consenso liberal, ou seja, a designada democracia liberal (se ela existe ou não, é outro tema). Esse consenso e o seu sistema pareciam inamovíveis e moldavam até as respectivas oposições. Derrotado o comunismo e identificados os “maus”, os inimigos da democracia liberal, a história não chegou ao fim, mas desenvolvia-se unicamente contabilizando os sucessos crescentes desse liberalismo. Mas eis que surge uma nova direita fora do sistema, que é imediatamente diabolizada como extremista e até fascista. Curiosamente até agora todas as expressões de esquerda, mesmo nos antípodas do liberalismo, são protegidas, mas estará essa protecção perto de terminar? No caso francês, o programa económico e social da Nova Frente Popular (NFP) é incompatível com essa sociedade liberal.
Interessa-nos o caso europeu, mas veja-se a situação nos EUA e até no Brasil, o emergir de novas forças não controláveis pelo sistema, a não ser através do uso político do aparato jurídico-policial para criminalizar essas irrupções. O caso da União Nacional e da Nova Frente Popular em França representam também a rejeição radical do sistema e não tanto uma alternativa. No grande jogo mundial, China, Índia e Rússia também não se submetem docilmente ao pensamento único da dita democracia liberal.
Será que começou o início da erosão do grande consenso liberal? Esta nova direita objectivamente não é controlada pelo sistema, e esta esquerda pode também deixar de ter a protecção do sistema, de ser-lhe útil. Algo começa a surgir, ainda recentemente políticos como Ursula Leyen alertava para o perigo da extrema-direita, mas também da extrema-esquerda.
Será que a nova esquerda capturada pelo consenso liberal, e ocupando o território desertificado pelo liberalismo relativamente aos valores e aos costumes, como esquerda cultural, começa a adquirir a alforria e a divergir com propostas económicas e sociais que relembram a matriz da esquerda original?
A NFP parece regressar em alguns aspectos à matriz pré-Maio 68. Essa data é a da primeira revolução hiperliberal, como a designou Régis Debray, em que a esquerda se tornou elitista e afastada da realidade, abandonando o homem comum.
Mas sejamos objectivos, nem essa nova direita, nem essa esquerda terão qualquer hipótese de triunfo, excepto se eclodir um qualquer apocalipse ambiental, nuclear, pandémico ou económico.
No caso da esquerda, acrescenta-se um aspecto particular, as suas derivas manicomiais e negadoras da racionalidade, da factualidade e do mais elementar senso comum que são obstáculos a um regresso à matriz original. Alguns exemplos simples, por estes dias via-se em França muita gente com bandeiras de apoio ao Hamas e à teocracia iraniana. Umas jovens espanholas celebravam a vitória da esquerda numa festa ‘gay’ e perguntavam-lhes (a entrevista é real), se preferiam em Espanha um governo liderado pelo partido Vox ou um califado islâmico, as três responderam que preferiam o califado por tudo o que lhes têm chegado pelos média sobre a extrema-direita. A ministra de esquerda com uma pasta relevante do novo governo trabalhista inglês afirmava por estes dias que não há uma só definição de mulher e que qualquer identidade depende dos contextos, e a insanidade tem milhares de exemplos diários.
Os próximos tempos demonstrarão ainda o crescimento desses extremos do sistema, seja, em Portugal, Espanha, Itália, França, e até nos países do norte da Europa, mas perderão vigor e serão assimiladas ou acantonadas em nichos específicos, não provocando uma mudança de facto no sistema vigente.
Uma Europa dominada por essa nova direita e esquerda, até por um novo tipo tensão entre ambas, implicaria sem dúvida um novo sistema económico, social, axiológico e cultural. Essas novas tendências são, contudo, também de tal modo divergentes que podem não coexistir, conduzindo a conflitos violentos e permanentes. O caos que geraria um novo sistema seria favorável ao surgir de uma nova tirania. Mas o sistema hiperliberal é demasiado poderoso para ser vencido, por enquanto em relação a esta direita e esquerda, divide para reinar e apoia essa nova esquerda para liquidar a nova direita. O que é curioso, pois, por exemplo, o programa da NFP é a negação do modelo do novo capitalismo e desta União Europeia. Não acredita o sistema que esta esquerda tenha efectiva capacidade de se organizar, e por isso é inofensiva, e serve como meio para atacar a nova direita?
O sistema hiperliberal, se considerar que a instabilidade não é facilmente controlável, acabará por expor uma pouco mais o seu subtil e encapotado totalitarismo de controlo total da vontade e emoções das pessoas e até das suas decisões. O controlo que tem sobre as cadeias de produção e a abundância /carência de produtos, o domínio total sobre subir / baixar juros, alterar condições de vidas adquiridas, facilmente subjugarão, quando necessário, as populações aos seus ditames, como fizeram na crise das dívidas soberanas, vergando países e indivíduos. Quase ninguém no ocidente aceitaria o boicote do verdadeiro poder mediante um decréscimo do nível da sua vida material e da capacidade de adquirir produtos. Ninguém estaria preparado em nome de ideais para suportar, mesmo que de modo temporário, baixa de vencimentos, subida galopante da inflação, racionamento de alimentos e de energia, aumento de preços exponencial e subida de juros, mesmo que controlada (os juros só sobem até ao ponto anterior a qualquer revolta colectiva).
Qualquer mudança no ocidente será sempre falsa fora do sistema. A mudança possível é apenas espectacular no sentido debordiano, porque a realidade é já só uma construção resultante de uma acumulação de um conjunto de espectáculos e encenações que devem ser assimilados como se fossem a realidade. Aliás, já nem vivemos no tempo da política e este regresso de debates ideológicos é até atípico. A política é secundária perante o poder económico-financeiro e a capacidade tecnológica desta nova ordem que é mundial. As alterações políticas nacionais, não afectam o verdadeiro poder, e assistiremos apenas a mudanças cosméticas e provisórias. Pode-se até simular determinados conflitos e crises, mas não passarão disso mesmo, encenações.