É uma guerra que não tem fim à vista, com acusações de parte a parte, e que mete outros atores – desde logo os clientes, bem como as entidades governamentais envolvidas. Quando os táxis ‘viviam’ sozinhos nas estradas portuguesas, muitas eram as queixas do limite de licenças, mas também se falava à ‘boca cheia’ do trespasse de alvarás que custavam milhares de euros, que obrigavam os taxistas contratados a trabalharem mais de 12 horas seguidas.
Com o aparecimento dos TVDE tudo se alterou, passando boa parte da população a aderir a essas plataformas eletrónicas, onde o serviço prestado era de qualidade e mais em conta – muitos dos motoristas de TVDE ofereciam garrafas de água, rebuçados, as viaturas estavam sempre impecavelmente limpas, mas… e há sempre um mas, desde há uns anos o serviço de TVDE piorou consideravelmente e aquilo que se dizia dos taxistas passou a dizer-se dos condutores de TVDE. Que muitos não falam português, outros conseguem enganar os clientes, trocando de telemóvel e de motorista nos aeroportos, antes dos clientes entrarem no veículo, entre outras peripécias. Para agravar a situação, nas redes sociais começaram a surgir relatos, muitos deles não confirmados, de casos de tentativa de violações, entre outras agressões.
O boom dos TVDE e o afundanço dos táxis
Mas passemos a palavra aos intervenientes, dando primeiro alguns dados estatísticos. Enquanto a indústria dos táxis sofre – tendo perdido quase 6 mil motoristas em três anos, o que corresponde a uma queda de 21,4% – , a dos TVDE cresce exponencialmente. Sabe-se que existem cerca de 69 mil licenças de motoristas de TVDE ativas no país, mas somente 21.217 de táxi. Quando se aborda esta problemática, indicam-se o efeito da pandemia, os salários baixos e pouco atrativos e, também, inevitavelmente, o crescimento dos TVDE. Mas o que dizem os representantes de cada setor, ouvidos pelo Nascer do SOL?
«A questão não é ser rentável ou não: todos os setores têm mais ou menos rentabilidade. É uma infâmia que querem transmitir dos TVDE. Nos TVDE, as plataformas atribuem o valor de mercado contrariamente ao setor de táxi… Nos TVDE, as tarifas não têm regulamentação. Não há um tarifário mínimo pré-estabelecido para a rentabilidade e sustentabilidade do setor. Logo, a lei da oferta e da procura é estabelecida pelas plataformas», começa por explicar Victor Soares, presidente da Associação Movimento Nacional (AMN) – TVDE.
«A associação já apresentou uma proposta de alteração à Lei 45 de 2018 para definir o valor mínimo por tempo e quilómetro», avança o representante. «É importante definirmos isto para salvaguardar as empresas no seu investimento, nos custos inerentes à atividade TVDE que é o veículo, seguros e manutenção, contabilidade, segurança social, etc. E salvaguardar também os interesses dos trabalhadores, sendo eles prestadores de serviços e não empregados ou colaboradores da empresa», frisa.
Relativamente à situação que foi recentemente divulgada, e que prejudica a reputação dos TVDE juntamente com outras, que diz respeito à alegada violação de uma mulher num veículo TVDE por três indivíduos, na semana passada, Victor Soares considera que «há aqui dois pontos diferenciados». «Há a questão desta e outras situações que vieram a público. Sempre alertei que as pessoas, quando chamam um TVDE, têm de o fazer pela aplicação. Não por uma chamada, por encontrar um veículo na rua, etc. Por uma questão de segurança, devem sempre utilizar a aplicação para identificarem o motorista e a viatura», frisa.
«Achamos que há bons e maus prestadores de serviços/colaboradores/empregados, mas no TVDE temos uma segurança. As pessoas identificam o motorista e a viatura. Quando não está devidamente identificado, a pessoa é livre de recusar a viatura, informar a plataforma e, automaticamente, essa conta é cancelada ou bloqueada por um tempo até verificação dos dados», salienta. «Sabemos que podem existir estes problemas, mas se acontecer este tipo de coisas os passageiros também são co-responsáveis», diz o presidente da associação que propôs ao IMT a criação de um selo holográfico para identificação das viaturas.
«As ditas placas que existem nos veículos, que todas as pessoas podem imprimir em casa… O selo holográfico é uma certificação pela Casa da Moeda onde nesta placa esteja a matrícula do veículo e o número de operador. Logo, aqui não se pode fazer cópias porque já é crime», declara, tendo uma posição, naturalmente, diferente da de Florêncio Almeida, presidente da ANTRAL, que começa por dizer que «é mais fácil obter licenças de TVDE, mas não é só isso».
«É que os táxis prestam um serviço público e para o serviço público ser prestado convenientemente tem de haver regras. Porque se não houver regras acaba por ser como os TVDE. Eles não vão a todo o lado, só vão onde há o filet mignon. Há locais onde o táxi é o único meio de transporte. De socorro e social. Temos de perceber que nas zonas mais distantes dos grandes centros há povoações que têm um táxi. Não têm bombeiros nem polícia. Se uma pessoa adoece, precisa do táxi», adianta o dirigente que está à frente da ANTRALhá mais de vinte anos.
«E o dizerem que há milhares de licenças de táxi por atribuir é uma falácia. Se elas nunca foram atribuídas é porque, efetivamente, não fazem falta. Até pelo contrário: nós entendemos que há licenças a mais», clarifica, observando que «o problema maior que o setor de táxis atravessa hoje é a falta de mão-de-obra».
«Os motoristas de TVDEnão fazem exames nem nada e gastam ali 130 euros. Tem de se gastar 700 euros para se ser motorista de táxi. Não é uma profissão atrativa nem garante estabilidade praticamente a ninguém. Estamos fartos de pedir no IMT que seja emitido o certificado provisório para os candidatos que queiram ser motoristas de táxi. E, entretanto, iam trabalhando e fazendo o seu curso. Iam rentabilizando no dia-a-dia», recomenda, sugerindo que o Instituto do Emprego e Formação Profissional auxilie quem deseja ser motorista de táxi.
«Os TVDE são grandes empresas. Há muitos interesses no meio disto tudo. Há muitos milhões. A Google, a Google Maps, etc. têm muito dinheiro para distribuir», critica, explicitando que «o Instituto de Mobilidade e Transporte perdeu alguma importância, mas a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes tem muita responsabilidade nisto tudo».
Mas ainda vai mais longe: «Houve um senhor na Assembleia da República que disse: ‘Estou-me marimbando para os táxis. Quero um carro com motorista de gravata, com uma garrafinha de água e tudo’. E, agora, não há ar condicionado, andam com os vidros todos abertos, não há água para os clientes, os carros andam todos amachucados e a cheirar a caril», atira, acreditando que a indústria dos TVDE constitui «a escravidão moderna dos trabalhadores».
As queixas que não param de aumentar
Segundo dados avançados ao Nascer do SOL pelo Portal da Queixa, registou-se um aumento superior a 30% no volume de reclamações no primeiro semestre de 2024, sendo que ‘o pico’ de reclamações ocorreu no mês de junho, tendo sido contabilizadas 142 reclamações (115 foram verificadas no mesmo período do ano passado e 90 em maio). Importa dizer que 16.2% das reclamações são apresentadas pelos próprios motoristas.
A cobrança indevida, «valores cobrados das contas por falhas na aplicação, cancelamentos por parte dos motoristas, entre outros motivos», é o principal motivo das queixas, sendo que a percentagem foi de 43.1% até agora. Segue-se o bloqueio/Ativação de conta com 11% e, depois, encontramos o valor excessivo – «valor cobrado acima do mostrado na aplicação» – com 8.5%. Os casos em que os motoristas não aparecem para realizar a viagem correspondem a 6.3% das reclamações e a condução perigosa a 4.8%.
Contactada pelo Nascer do SOL, a Uber decidiu não fazer qualquer comentário. Já a Bolt respondeu, avançando que solicita a todos os motoristas atualizações dos registos criminais a cada três meses, «que devem estar isentos de ocorrências para poderem operar». «A segurança de quem escolhe diariamente a Bolt é a nossa principal prioridade. A nossa suite de segurança na app está disponível para ambos e inclui, por exemplo, o Botão de Emergência, que contacta diretamente as autoridades;», adianta, concluindo que do lado do utilizador contam também com «a partilha de viagem (mesmo que os contactos não tenham a aplicação da Bolt) ou o ‘unmatching’ – se classificar o motorista com 1 estrela não o volta a encontrar».