BERLIM – Pobre Europeu este. Triste Alemanha, envolta num Verão que foi mais Inverno do que outra coisa, amarrada a uma organização medíocre, talvez uma das piores que tive o azar de enfrentar depois de tantos anos a trabalhar em provas com esta dimensão. Se o objetivo era diminuir a competição, houve muitos que fizeram por isso. No relvado, seleções medíocres e cobardes voltaram a um futebol canhestro e sem ambições. Em redor dele, houve um Campeonato da Europa feito por alemães para alemães, muito pouco preocupados em procurar que os que os visitaram se sentissem em casa. Não sou, em geral, de me queixar, e entendam estas palavras como objetivas e não carregadas de azedume. Tal como o escrevi aquando do Mundial do Qatar (um modelo de organização que justifica porque a FIFA vive a anos-luz da UEFA), e confrontado com tudo o que se escreveu contra ele em todos os campos, nestas coisas quem não quer não vem. Não é obrigatório, pelo contrário, é facultativo, nunca entendi a mentalidade portuguesinha do dizer mal só por dizer, até parece que vivemos num país sem mácula e não naquele país que o mar não quer, como escreveu Ruy Belo. Claro que só o nome de Alemanha parece trazer colado a si uma imagem de eficiência acima de qualquer suspeita. Encontrei uma Alemanha bisonha, mergulhada numa espécie de confusão física e mental, pejada de obras por toda a parte, presa a dificuldades que deveriam ter sido facilmente ultrapassadas, sobretudo na comunicação com os agentes deste Euro, fossem eles simples adeptos ou gente da imprensa. O tempo foi e veio. Um mês alemão que teve, como é óbvio, motivos para boas memórias, mas não deixa saudades no que teve para nos oferecer como espetáculo e como alicerces desse espetáculo.
Viajei por toda a parte onde as histórias esperavam por mim, onde as crónicas praticamente se escreveram por si próprias, auxiliando a minha prosa desacertada. De Munique, no primeiro dia, a Leipzig, de Bochum, onde me instalei por mais de uma semana, utilizando essa cidade agradável e tranquila como trampolim para os jogos das vizinhasDortmund e Gelsenkirshen, de Essen a Hamburgo, de Weimar a Aachen, de volta a Munique e daí até ao capítulo final de Berlim.Cumpri a costumeira Magical Mistery Tour que sempre envolve estes meses em que o futebol ganha o estatuto de centro do mundo e, através dele, podemos escrever sobre a realidade dos países onde aterramos para andar atrás dele. Sempre, como dizia o meu mestre Alfredo Farinha, com a necessidade de esclarecer, de divulgar, de opinar e de ser útil.
O Hino à Alegria
Foi escrito por Johann Christoph Friedrich von Schiller, poeta, filósofo, médico e historiador, um dos grandes alemães do Século XVIII. Hino à Alegria é a visão idealista de uma Humanidade em que todos são irmãos. Em 1824, Beethoven tornou-o universal ao incluí-la no último movimento da Nona Sinfonia. «Freude, schöner Götterfunken/Tochter aus Elysium/Wir betreten feuertrunken/Himmlische, dein Heiligtum!» («Alegria, és Divina/Filha de Elísio/tornas ébria a Poesia/Inspiras Dionísio». Hoje é o Hino da Europa, embora a Europa esteja sempre pronta a desmentir-lhe as palavras. Foi com um hino à alegria que este Campeonato da Europa chegou ao fim, o hino à alegria de uma seleção espanhola superior a todas as outras, mistura de juventude com alguma experiência, exibindo uma união e uma camaradagem singulares, apostando num estilo de jogo ofensivo e criativo, recusando-se ao medo. Do primeiro dia em que entrou em campo até à final do passado domingo em Berlim, a Espanha foi sendo melhor e cada vez melhor, bateu todos os sete adversários que surgiram na sua frente, reconciliou-nos com o bom futebol e fez-lhe justiça. Não precisou de nomes estratosféricos, como os que passaram pelos estádios alemães como fantasmas de si próprios. Foi ela e as suas circunstâncias. E que belas circunstâncias!
Mais uma vez Portugal foi pequenino. E até ridículo.Não ridículo pelo que os seus jogadores fizeram, porque não tinham capacidade para mais, não têm arte para fazer a diferença, não possuem, infelizmente, armas para vencer conjuntos mais fortes e mais bem preparados. Foi eliminado nos quartos-de-final, ao fim ao cabo a meta a que podemos almejar se não se der o caso de a sorte nos fazer cair do céu aos trambolhões adversários fracos, como aconteceu em 2016. Ridículo, isso sim, por tudo o que a imprensa quis fazer de uma seleção pouco mais do que banal, elevando-a, como sempre em ocasiões como esta, aos píncaros de uma montanha que não somos capazes de trepar. Chegámos ao ponto do grotesco de querer fazer desta equipa a mais brilhante de todas as gerações do futebol em Portugal, um insulto para aqueles que, no passado, até bem recente, vestiram a camisola dos cinco escudos azuis com maior qualidade, com mais classe, com muito mais orgulho e vontade.
Em Um Estudo em Vermelho, o infalível Sherlock Holmes vê-se a contas com um dos grandes mistérios da sua carreira, no caso mesmo o primeiro que Sir Arthur Conal Doyle lhe pôs à frente. Ora, se Portugal continua a ser um mistério, transformado numa fraude para quem se deixa levar pelo histerismo de uma imprensa mais interessada no barulho do que na realidade, a Espanha apresentou-nos uma nova forma de encarar o futebol atual, infelizmente tão passivo e tão pusilânime. Tiremos ensinamentos do que Luis de La Fuente construiu, sem receio de atirar para as costas de dois rapazinho, Yamal (que fez 17 anos na véspera da final) e NicoWilliams, de 22 anos, elementos intempestivos que baralharam adversários à sua vontade graças à força de um meio-campo tão seguro como criativo que teve em Pedri (lesionado frente à Alemanha e fora da equipa a partir daí), Rodri, FabiánRuiz e Dani Olmo os maestros de movimentos ofensivos que, mesmo utilizando a posse da bola na função de defender, mantendo-a longe dos pés dos adversários, fizeram dela sobretudo desdobramentos atacantes, e com a insistência no aparecimento de qualquer um destes quatro jogadores junto à grande-área contrária, ou para utilizar o remate de longe ou, mais frequentemente ainda, para entrar nela aproveitando os espaços que o ponta-de-lança Morata ia deixando vagos. A Espanha ganhou com brilhantismo o seu quarto Campeonato da Europa. Não li, na imprensa dos nossos vizinhos, que estamos perante a mais brilhante geração de todos os tempos porque ninguém esteve disposto a cair desse escadote abaixo. Machado de Assis dizia: «É melhor cair das nuvens do que de um terceiro andar». Nós caímos das nuvens que inventámos sem nada que as sustentasse. Os espanhóis não vivem nas nuvens. Percebem apenas, ao contrário de nós, que a fantasia pode ser eficaz e não uma monotonia. Não caem no grotesco da farronca. Até porque é pior cair da bazófia do que de um sexto andar.