Verdades que não morrem

Desde a Grande Revolução Francesa de 1789 que o povo francês apanhou o vírus da rebelião, e desde aí entende que tudo se resolve pela força

Relendo Oliveira Martins deparo com a seguinte asserção que passo a citar: «Talvez fora do cesarismo nunca possa haver saída para as crises sociais, porque a virtude humana acaso nunca será capaz da abnegação necessária para manter sua sponte [espontaneamente], sem coacção, o fardo pesado da ordem civil. A liberdade requer o máximo sacrifício: para que o nosso espírito seja livre é mister que escravizemos o nosso corpo rebelde e a nossa natureza animal.» (História da República Romana, vol. II, p. 260)

Esta citação de Oliveira Martins assenta como uma luva ao caso da França (sem de forma alguma excluir outras nações, como a nossa, por exemplo). Mas a França é um caso hiperbólico no qual, em vez de escravizar o nosso corpo rebelde e a natureza humana, se espicaça um e outra. Por tudo e por nada os franceses enchem as ruas aos milhares, obrigando o poder a mobilizar todo o tipo de forças de segurança para conter a avalanche e evitar os desmandos em que invariavelmente incorrem. Mas os franceses gostam da violência; gostam de montras partidas e de automóveis e ecopontos a arder. Desde a Grande Revolução Francesa de 1789 que o povo francês apanhou o vírus da rebelião, e desde aí entende que tudo se resolve pela força. É o país mais violento da Europa: os franceses, por exemplo, não deixarão passar o aumento da idade da reforma, indiferentes às consequências dessa recusa para a Segurança Social. Macron que se cuide.

Entre nós, o PREC foi um desbragamento: o nosso corpo rebelde e a nossa natureza animal puderam dar largas aos seus ímpetos mais irrazoáveis. O resultado foi uma anarquia em que todos queriam tudo, respaldados pelo COPCON que transitoriamente foi quem desgovernava Portugal. Levou tempo, e custou muita negociação, até que o 25 de Novembro, respaldado pelos comandos de Jaime Neves, instaurou um mínimo de ordem e hierarquia num país que se habituara a governar a partir da rua. Não foi tarefa fácil habituar os portugueses, coagidos pela nova ordem de coisas, a aguentarem o fardo pesado da ordem civil. 

Contra tudo e contra muitos, esta acabou por prevalecer, mas o vírus da desordem que o PREC semeou ainda não está inteiramente extinto. Veja-se o cerco movido pela PSP contra o Capitólio, um teatro antigo onde nas vésperas das eleições legislativas deste ano debatiam os dois candidatos a primeiro-ministro. Desde o 25 de Novembro para cá, só me lembro de outra ocasião em que o poder legítimo do Estado foi tão desaforadamente e perigosamente desafiado: recordo, em 1989, a manifestação dos polícias ‘secos’ que, por ordem de Fernando Nogueira, acabaram ‘molhados’ e regressaram obedientemente aos quartéis. Nogueira foi implacável: convocou o corpo especial da PSP que, no Terreiro do Paço, interveio com canhões de água e bastonadas. As reivindicações – liberdade sindical, sobretudo – não eram irrazoáveis. Mas Nogueira julgou, e bem, que a forma como os polícias afrontaram a autoridade do Estado era insuportável.

Hoje vivemos dias de tensão: todos querem tudo. Até agora, uma parte considerável dos sindicatos parece disposta a contemporizar com o poder, tendo já sido obtidos acordos significativos.

Escravizando o nosso corpo rebelde e a nossa natureza animal, é justo assinalar que governo e sindicatos, com coacção meramente implícita, estão a aguentar o fardo pesado da ordem civil. Resta a pergunta: até quando? Oliveira Martins tinha toda a razão, e o poder estabelecido não pode baixar os braços: «A virtude humana acaso nunca será capaz da abnegação necessária para manter sua ponte, sem coacção, o fado pesado da ordem civil». Eis uma verdade intemporal.