Devíamos relativizar os sobressaltos políticos do presente, a emergência de uma Nova Direita e eventual Nova Esquerda ou o significado da irrupção de fenómenos como Trump e Bolsonaro. Sorriamos perante os arautos de uma democracia liberal de alternativa única com o apoio societal do esquerdismo. Coloquemos no baú das recordações Marx, Gramsci, Hayek, Friedman e Keynes. Deixemos a social-democracia nórdica, o socialismo democrático, a democracia cristã, os partidos conservadores e liberais e até mesmo os extremismos de direita ou de esquerda para os manuais de história. Esses protagonistas são meros figurantes de um drama maior. No mundo real é outro paradigma que triunfa e progressivamente adquire a sua forma definitiva. Trata-se de uma revolução portadora da mudança definitiva da história da humanidade. Referimo-nos ao que foi baptizado com o nome de ideologia californiana. Essa é a ideologia que está a moldar estruturalmente o mundo que já é o de presente e de modo único.
Estamos no início da última fase do hiperliberalismo e desse novo capitalismo, em que a própria dinâmica de uma ideia de mercado se impõe às decisões políticas situadas e só compreenderemos o homem a partir de uma nova antropologia, a do desenraizamento. Numa etapa seguinte, muitas decisões que considerávamos políticas já nem serão tomadas unicamente por humanos. A gestão das sociedades e do planeta será planificada e administrada de modo tecnológico por elites com um poder que faria inveja à velha aristocracia do absolutismo. O embrião deste derradeiro totalitarismo hiperliberal, tecnológico e progressista surgiu acerca de cinquenta anos na Califórnia. Factualmente iniciou-se nos anos 50, mas afirmou-se em definitivo nos anos 70 nessa região. O que aí surgiu supera em muito, para o mundo actual, o que a Grécia, Roma e o Cristianismo foram para a formação do Ocidente. A capacidade técnica ao dispor desta ideologia conduz a um processo irreversível de transformação radical do que é o homem, o seu modo de vida, a sua própria natureza e o que é o planeta.
Um dos aspectos mais impressivos dessa ideologia é o modo inédito como fundiu uma ideia de liberalização total da vida, as ideias progressistas até do novo espírito de esquerda que surge a partir dos anos sessenta, a ideia de mercados totalmente livres e a criação e o uso inovador da tecnologia.
O espírito liberal libertário dos jovens da Costa Leste desse tempo juntou curiosos e génios da informática, animados pela contracultura, mas que queriam potenciar financeiramente as suas capacidade e criar uma renovada utopia inseparável da tecnologia. O desenvolvimento do mundo tecnológico, hiperliberal e progressista só se compreende considerando essa novidade. As ideias clássicas de liberalismo, democracia e socialismo estão já de facto obsoletas. Usamos ainda conceitos e livros antigos para tentar compreender um mundo já radicalmente novo e diferente.
O conceito de ideologia californiana foi cunhado num texto de 1995, The Californian Ideology escrito por Richard Barbrook e Andy Cameron. Estes autores foram os primeiros a sistematizar as ideias e origens desse movimento. Esse seu texto vale precisamente por essa identificação, e não tanto pela crítica que contém a um novo liberalismo emergente ou pelas crenças optimistas destes autores em relação às possibilidades democráticas e até socialistas que encontravam num novo mundo idílico possibilitado pela tecnologia. Acreditavam eles que estaríamos perante uma nova formulação do Estado democrático, doravante, mais participado que nunca pelos cidadãos. Esse Estado apoiaria e regularia de modo justo os desenvolvimentos tecnológicos, recriando até a antiga acepção de comunidades de dádiva, onde as relações entre humanos se regiam pela lógica do dom identifica por Marcel Mauss, ou seja, as relações económicas voltariam a estar inseridas numa significação social marcada pelo dar, receber e retribuir. Os moldes dessa nova sociedade e democracia electrónica recuperariam o modelo jeffersoniana para este novo tempo. Esse mundo verdadeiramente admirável permitiria a definitiva libertação social dos indivíduos e a construção plena de uma sociedade efectivamente mais justa, emancipada e evoluída.
A nova era caracterizada por uma emancipação pós-Kantiana seria marcada pelo signo da libertação definitiva de toda a opressão, o que se deveria ao bom uso de uma tecnologia com um poder admirável. Humanos inteligentes, amistosos, futuristas, prósperos e igualitários viveriam pacificamente desenhando um futuro cada vez melhor e potenciando a ideia de homem e sociedade melhorados. As relações entre o Estado e os indivíduos seriam profundamente modificadas, as estruturas de poder social, político e legal existentes desapareceriam, para serem substituídas por interacções irrestritas entre indivíduos livres e autónomos e os seus ‘softwares’.
Não tardou para que essa utopia da sociedade digital fosse incorporada na dinâmica do novo tipo de capitalismo amoral e predatório. Mas esse novo mundo tecnológico era demasiado poderoso para que não contaminasse também esse capitalismo, forjando uma nova etapa do liberalismo.
Uma mistura de atitudes de liberalização absoluta dos costumes, atitudes antiautoritárias típicas da contracultura da Costa Oeste dos EUA são os elementos que nos permitem perceber a génese e o conteúdo desse utopismo tecnológico e a sua nova versão liberal económica. Um individualismo narcísico patológico de hippies capitalistas em que cada um acredita poder ser o que quiser, a ideia que não há limites e com uma abundância antes impensável, em que todos podemos ser “hip and rich” marca essa mentalidade.
O estranho e exitoso casamento de ‘nerds’ de computadores, capitalistas inovadores, activistas sociais, académicos da moda, futuristas, profetas da tecnologia, pequenos empreendedores sofisticados na nova áreas tecnológicas resultado da fusão a boémia cultural de São Francisco com as indústrias de alta tecnologia de Silicon Valley identificam esta ideologia. O espírito libertário dos ‘hippies’ fundiu-se com o zelo empreendedor dos ‘yuppies”. Esse espírito perdeu ao longo das décadas seguintes a ingenuidade inicial, e transformou-se, na boa tradição americana em pragmatismo implacável, se bem que mantendo o seu carácter visionário.
Já não é objectivamente possível compreender o presente e o que é o novo liberalismo, o novo capitalismo e o novo progressismo sem esta matriz, que já define hoje as politicas oficias do ocidente: «… uma mistura de cibernética, economia de livre mercado e libertarianismo contracultural…artistas e académicos de vanguarda têm defendido a filosofia “pós-humana” desenvolvida pelo culto extropiano da Costa Oeste. Sem oponentes óbvios, o domínio global da ideologia californiana parece estar completo».
Os trabalhos da Neurolink com implantes de chips nos cérebros humanos e o trabalho desenvolvido pela Boston Dynamics na criação de humanóides que substituem os humanos, os novos sistemas de realidade virtual, a invasão da Inteligência Artificial em todos os domínios da nossa vida, o dinheiro digital, a informatização total das nossas vidas e sociedade, a destruição de qualquer ideia ou herança do passado, são apenas alguns exemplos de uma prova do triunfo dessa ideologia. As distopias de 1984 de Orwell e do Admirável Mundo Novo de Huxley podem ser apenas ténues ilustrações deste novo mundo.
Relatórios recentes da Comissão Europeia já recomendam seguir-se o modelo californiano de mercado livre para construir “as superestradas da informação” e nichos importantes de artistas e académicos são influenciados pelo pensamento do “pós-humano”.
O poder económico e a visão futurista do planeta e do humano tecnológico por parte de empresas como a Google, e o império de Musk, com a SpaceX, Tesla, OpenAI, SolarCity e a X, a visão do novo homem de Ray Kurzweil têm mais influência na construção do futuro que qualquer política autónoma do grande consenso político liberal progressista.
Se é verdade que desde os anos 80 os liberais económicos mais radicais e os libertários da esquerda não comunista dominavam o mundo, fundindo-se no poderoso liberalismo progressista, ocupando os principais cargos das universidades, jornais, indústria cultural, empresas, governos, hoje são súbditos de nomes que vão de Steve Jobs, Bill Gates, a Elon Musk e Mark Zuckerberg. A ideia de liberdade individual e ilimitada que é a concepção ideal para o funcionamento da visão liberal do mercado livre tem agora outra dimensão, a tecnologia é a grande ferramenta desse mundo em que tudo é possível.
Os sonhos libertários têm, contudo, revelado outra dimensão, uma sociedade enlouquecida, em que a tecnologia tem moldado a arquitectura psicológica do indivíduo e tem sobre ele um controlo e vigilância total. A crença na diminuição do poder tutelar do Estado e da ideia de um Estado independente de poderes económicos ou protagonista de qualquer forma de absolutismo, com capacidade de regulação em nome dos cidadãos, um mercado livre como a principal força dinâmica de uma liberdade inédita dos indivíduos, uma nova formulação democrática sob a forma de uma ágora electrónica foram ilusões. O absolutismo tecnológico não melhorou os homens, não somos mais livres, felizes e democratas, mas transformou em dogma a crença que a liberdade individual é inseparável da submissão às leis naturais do progresso tecnológico e do livre mercado. Os estados transformaram-se em plataformas de um poder não democrático que deve ser iludido sob a aparência de desempenhos ditas democráticas, geridos por um poder transnacional, sem escrutínio e inatingível, que dita as regras mundiais que cada nação deve colocar em prática. A ágora electrónica democrática transformou-se numa espécie de matrix onde cada indivíduo na solidão da sua casa, do seu trabalho e telemóvel vive encerrado e cada vez mais afastado da verdadeira realidade e onde assistimos ao crescimento de assimetrias sociais e económicas crescentes entre pessoas e entre países e ao criar de um abismo intransponível entre as elites e as pessoas comuns.
Um dos alertas de Barbrook e Cameron confirmou-se: «Os profetas da Ideologia Californiana argumentam que apenas os fluxos cibernéticos e os redemoinhos caóticos dos mercados livres e das comunicações globais determinarão o futuro. O debate político, portanto, é um desperdício de fôlego. Como libertários, eles afirmam que a vontade do povo, mediada pelo governo democrático, é uma heresia perigosa que interfere na liberdade natural e eficiente de acumular propriedade. Como deterministas tecnológicos, eles acreditam que os laços sociais e emocionais humanos obstruem a evolução eficiente da máquina. Abandonando a democracia e a solidariedade social, a Ideologia Californiana sonha com um nirvana digital habitado apenas por psicopatas liberais.».
A realidade dos estados, das nações, das soberanias, da intervenção estatal, da vontade popular, do primado dos “muitos” sobre os “poucos”, da regulação dos mercados, do controlo do desenvolvimento industrial e tecnológico para fins sociais e democráticos, o florescimento dos média comunitários e de ágoras electrónicas democráticas, a importância das instituições públicas, da ideia da tecnologia como a condição de um mundo próspero e bom não é real.
O fatalismo económico e tecnológico predominou sobre as noções de comunidade e de progresso social. A nova visão de libertação social idealizada pela contracultura revelou-se, foi transformada em produtos comerciais e força de liquidação das resistências que significavam os laços morais, sociais, culturais e familiares, ou seja, as características fundamentais da identidade humana.
Este mundo caracterizado pela avidez sem limite dos empresários liberais, das tecnologias e da contracultura da “Califórnia” define o novo e último capítulo do liberalismo com humanos. O futuro próximo será o do transhumanismo, da hibridação homem e máquina, sacrificando o mundo humano a essa nova ideia de progresso sob o signo do ilimitado.
A explosão do potencial das ciências cognitivas, das nanotecnologias, da inteligência artificial, da engenharia genética e das biotecnologias fazem parte da exponenciação de novas formas de acumulação de capital, mas o seu objecto final será a produção do homem aumentado que levará à substituição do humano. A ilusão de se ter descoberto a fonte inesgotável da valorização do capital, num mundo unicamente tecnológico, onde o ser humano se tornará obsoleto, tornará até a noção de capital inútil, ou então, mudará o seu significado. Eis o mundo global encerrado em sistemas informáticos e digitais, onde se produz o que é a realidade e a verdade, e se projecta a própria obsolescência do homem.