Emigrante

Procurador-geral adjunto jubliado

Gisele, chamemos-lhe assim, chegou à Terra em Minas Gerais. Brasil.

Aos 14 anos, disseram-lhe em casa que tinha de trabalhar. Ganhar para comer.
Trabalhou que se fartou. Desde limpa pára-brisas de automóveis, vendedeira de bolos no areal a varredeira de escadas de prédios. Com o pouco que ganhava, foi acumulando um mealheiro num buraco do quarto onde dormia com três irmãos pequeninos.
Com o tempo, Gisele concluiu que assim não ia a lado nenhum. Solidão, tristeza, marasmo sem fim. Emigrar. Outros mundos. Europa. Aprimorou-se com o único vestidinho de chita comprado a prestações na loja ao lado. No centro, sem nunca olhar, adquiriu na agência de viagens o bilhete de avião. Só de ida.
Aconchegou, carinhosamente, o bilhete na mochila a tiracolo. Entrou, raseira ao muro, numa ruela esconsa, estreita e mal frequentada dos arrabaldes. Encontrou a loja dos contratos. No dístico, uns gatafunhos mal desenhados: APOIO- CONTRATOS.

Quando cá chegou, trazia o coração aos saltos, aos trambolhões a cabeça. Logo, logo se apresentou à empresa empregadora, a exibir o contrato de trabalho primorosamente escrito a computador em três folhas A4. Qual quê? Nunca ali existiu ou existe empresa alguma. Tombou amargamente no desespero da solidão. Chorou de dor na polícia. Registo da ocorrência e mais nada. Nunca mais. Alugou um quartinho numa rua ensombrada e triste da cidade. Uma cama, armário, mesa e cadeira. Banheiro colectivo ao fundo do corredor. Quatrocentos euros de renda mensal. Sem contrato. Sem recibos.

Gisele está desesperada. Só.

Fechou-se no quartinho semanas. A curtir a solidão. Recusou contratos de SPA de massagens duvidosas. Gisele é mulher de princípios morais. Bonita, bem feitinha, corpo bem desenhado. Escultural. Disse para si não venderei meu corpo à hora. Não vendeu. Encontrou trabalho na cozinha de um restaurante. Trinta euros cada quatro horas. Sem férias. Sem subsídio de férias. Sem subsídio de Natal. Das 10 da manhã, às 10 da noite, pela noite dentro às vezes, sem compensações. De segunda a sábado. Sem contrato de trabalho. Sem seguro de acidentes de trabalho. O restaurante registou-a como trabalhador independente, a recibos verdes. Paga à Segurança Social o que o restaurante devia pagar.

Gisele sabe tudo isso. Conforma-se. Submete-se. Sabe que a discordância expressa se chama despedimento sumário. Nós também sabemos. Fazemos de conta. As autoridades competentes também. São mudas, cegas e surdas.

Assim é que está bem.