Atletas trans. Uma discussão que não gera consenso

Os Jogos Olímpicos de 2024 – que arrancam no dia 26 de julho em Paris – incluem um novo requisito: atletas trans devem ter concluído a sua transição antes dos 12 anos para poderem competir. Porquê? E qual a posição do Comité Olímpico de Portugal?

Estamos na era da quebra de padrões normativos, de conhecer, aceitar e compreender diferentes realidades. Felizmente – mesmo que ainda existam várias e graves lacunas em inúmeros países -, de dia para dia, as pessoas trans (pessoas cuja identidade de género difere do sexo atribuído ao nascer) têm tido cada vez mais visibilidade, cada vez mais coragem de contar a sua história, de escrevê-la de forma mais livre. E eis uma preocupação nas mais diversas áreas. No entanto, dentro do desporto, o tema continua a não encontrar consenso. A discussão sobre a inclusão nos Jogos Olímpicos não é uma novidade. Há anos que está em cima da mesa. No entanto, ainda são poucos os estudos sobre os eventuais prós e contras. E, se até há pouco tempo, acreditávamos que os Jogos Olímpicos 2024 – que arrancam a 26 de Julho – seriam marcados por uma maior inclusão de pessoas trans, há poucas semanas percebemos que não será bem assim: a organização deve introduzir mais restrições face às edições anteriores. Mas porquê? Quais as novas regras? E qual a posição do Comité Olímpico de Portugal (COP)?

Antes e Depois

Recorde-se que, em 2021, o Comité Olímpico Internacional (COI) já havia atualizado as suas orientações para atletas trans, definindo princípios sobre a sua possível participação naquele que é o maior evento desportivo do mundo, para decisão das federações internacionais sobre o tema. As atletas trans podiam competir se os seus níveis de testosterona estivessem abaixo de 10nmol/L um ano antes da competição. No entanto, as regras sobre os níveis de testosterona aceites para competição trouxeram problemas que não tinham sido previstos, já que várias mulheres cis (pessoas que se identificam com o género que é designado quando nasceram) foram proibidas de participar em eventos desportivos, devido aos seus níveis naturalmente altos de testosterona. Foi o caso da atleta cis sul-africana Caster Semanya, que esteve o ano passado impedida de correr pelos altos níveis de testosterona. O Tribunal dos Direitos Humanos acabou por lhe dar razão. O recurso da especialista nos 800 metros, visava combater as regras que limitam a determinadas provas – até 400m ou a partir de 1.6 km – a participação das atletas com diferenças de desenvolvimento sexual, mas também que obrigam essas mesmas atletas, a fim de estarem a aptas a competir, a fazerem tratamentos para redução de testosterona.

Agora, as Olimpíadas de 2024 incluem um novo requisito: atletas trans devem ter concluído a sua transição antes dos 12 anos. Segundo o Comité Olímpico Internacional, a transição após os 12 anos poderia dar vantagem a atletas trans sobre atletas cisgénero. De acordo com a Federação Internacional de Natação (FINA), as mesmas regras estão a ser aplicadas às nadadoras trans. Só as que não passaram pela puberdade masculina podem competir. Recorde-se que, em março do ano passado, a World Athletics excluiu a participação destas atletas em provas femininas. A entidade máxima do atletismo a nível mundial passou a impedir a presença de quem tenha feito a transição de homem para mulher depois da puberdade. O presidente da World Athletics assegurou, na altura, que esta não seria uma decisão “para sempre”, mantendo-se um grupo de estudo sobre o tema.

Segundo João Paulo Almeida, diretor geral do Comité Olímpico de Portugal, tratando-se de duas das federações desportivas cujas modalidades têm maior peso no Programa dos Jogos Olímpicos (atletismo e natação), é expectável que, no seguimento de alguns casos de atletas trans com grande notoriedade nos media, como o da nadadora Lia Thomas, as orientações e normas de outras federações desportivas internacionais sigam o registo da World Athletics e World Aquatics, atendendo à contestação oriunda fundamentalmente de atletas femininas não trans que competem com atletas trans femininas, bem como à decisão do Tribunal Arbitral do Desporto de Lausanne relativamente à ação intentada por Lia Thomas com o objetivo de impugnar as regras da World Aquatics. “O que tem vindo fundamentalmente a mudar é um maior acompanhamento no estudo, regulação e monitorização da integração e competição de atletas com variação sexual nos diversos patamares de participação desportiva”, explica o responsável. “O COP há muito que expôs a sua posição centrada no equilíbrio entre a salvaguarda da integridade competitiva, rejeitando os casos em que a variação sexual configura uma vantagem competitiva injusta, com uma politica de inclusão e não-discriminação em função da identidade de género ou variação sexual, de acordo com os princípios estabelecidos sobre esta matéria no quadro de referência do Comité Olímpico Internacional atualizado em 2021”, continua. Ou seja, uma análise caso a caso, no respeito pelo direito à prática desportiva sem discriminação que, ao mesmo tempo, no que concerne ao desporto de alto rendimento, assente em condições de competitividade equitativas, “onde nenhum atleta possa ter uma vantagem de tal modo injusta ou desproporcionada em relação aos demais”. Interrogado sobre quantos atletas trans existem em Portugal, João Paulo Almeida admite que o Comité não dispõe desta informação, “a qual se afigura bastante relevante para, em Portugal, abordar, com evidências tangíveis, esta realidade”. No entanto, para si, no panorama atual, mais do que no passado, “é possível a uma pessoa trans visionar essa carreira, porém, naturalmente num contexto ainda por aprofundar, com diversas barreiras e condicionalismos a ultrapassar”.

Necessidade de mais investigação

O mais recente estudo sobre o tema, patrocinado pelo Comité Olímpico Internacional (COI) e publicado no British Journal of Medicine concluiu que mulheres trans apresentam várias desvantagens em relação a mulheres cis. No entanto, segundo vários especialistas, ainda existe pouca investigação sobre o assunto. “O estudos sobre questões trans, e questões de sexualidade em geral, é visto como um estudo ‘menor’, não merecedor de financiamento sequer. Os estudos de género/feministas/queer são tidos quase como uma pseudo-ciência tanto dentro das ciências sociais como nas ciências ‘duras’”, defende Ana Lúcia Santos, investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES). “O desporto tem sido estudado nas biociências, com enfoque na performance e prevenção de lesões e são praticamente inexistentes estudos com pessoas trans. Ainda, existem pouquíssimas pessoas trans que praticam desporto de forma competitiva, pelo que também essa escassez se reflete nos estudos conduzidos com pessoas trans que sejam atletas”, continua. Segundo a investigadora, pelo rumo que as políticas reguladoras de género, ou as regras de elegibilidade de pessoas trans no desporto de competição (federado), têm tomado, “parece cada vez mais distante uma pessoa trans visionar uma carreira desportiva federada e muito menos profissional”. “Se em 2015 vimos uma melhoria nas normas reguladoras emitidas pelo Comité Olímpico Internacional, com a recomendação de que não fosse exigida uma cirurgia de redesignação sexual e fosse apenas aplicada terapia hormonal com limite de testosterona 10nmol/L, hoje em dia vemos normas reguladoras de federações internacionais e nacionais a aplicar 2.5nmol/L de limite de testosterona e a impossibilitar de forma implacável a participação de mulheres trans que não passaram por processos de afirmação de género (que neste contexto se refere especificamente à toma de bloqueadores hormonais) antes dos 12 anos. Sabemos que é muito difícil uma criança de 12 anos ter acesso a terapias hormonais, tanto a nível legal, como a nível familiar, por exemplo”, explica, relembrando que são as próprias Federações Internacionais que colocam restrições. “O Comité Olímpico dá autonomia, desde 2021, a que cada Federação faça gestão própria da inclusão de atletas trans. Isto permitiu que as Federações impusessem regras bastante restritivas, como foi o caso da World Athletics, da FINA, entre muitas outras. O recente estudo encomendado pelo COI pode abrir uma brecha para que o paradigma mude de forma positiva à inclusão, uma vez que mostra que pessoas trans têm de facto muitas desvantagens na performance desportiva quando comparadas com atletas cisgénero”, lembra. “Penso que o estudo do COI já colmata muito do que precisava ser feito a nível de estudos de performance – é isso que preocupa o público, que pessoas trans (mulheres) não possuam uma vantagem injusta. O COI investigou aspetos para além da força muscular de repetição única, tendo procurado fatores até então descurados como a capacidade pulmonar, concentração de hemoglobina, entre outros. Além destes aspetos fisiológicos, é importante trabalhar para um verdadeiro acolhimento a nível social também. Um ambiente desportivo livre de transfobia, tanto dentro do campo como fora dele, é imprescindível para que as pessoas se sintam acolhidas e queiram continuar a praticar desporto”, remata a especialista.

Atletas trans

Recorde-se que, na Olimpíada de Tóquio, em 2021, a levantadora de peso neozelandesa Laurel Hubbard fez história ao se tornar a primeira mulher abertamente transgénero a participar no evento olímpico. Tal como escrevia o i em 2023, a competir enquanto homem, a atleta de 43 anos, teve um início de carreira promissor, estabelecendo recordes nacionais no seu país. Em 2001, afastou-se do halterofilismo devido à pressão que sentia para se integrar na sociedade enquanto pessoa do género masculino. Só no ano de 2012 começou o processo de transição e só em 2017 – 16 anos depois da interrupção –, voltou a competir, já enquanto mulher. A participação de Laurel acabou por ficar abaixo das expectativas: a halterofilista não conseguiu levantar a barra em nenhuma das três tentativas — a primeira com 120 e as duas seguintes com 125 kg –, acabando eliminada.

No mesmo ano, Quinn, membro da equipa feminina de futebol do Canadá, tornou-se na primeira atleta transgénero a vencer uma medalha nos Jogos. A seleção canadiana venceu a Suécia por 3-2 no desempate por grandes penalidades. Quinn assumiu-se como trans em 2020.