“Não deixa de ser uma ironia, uma ironia trágica, uma ironia muito trágica, que o ex-presidente dos Estados Unidos, que tem sido sempre um grande defensor da liberalização das armas, estivesse a centímetros de morrer através de um tiro de uma arma dessas que está nas mãos, neste caso, de um jovem de 20 anos. Isto devia fazer-nos refletir [sobre] qual é o sentido de se permitir que haja armas, espingardas, espingardas automáticas, livremente, na população”.
Durão Barroso
Compreender os Estados Unidos é aparentemente uma coisa fácil. Pensamos numa Democracia Liberal que faz parte da OTAN e imediatamente julgamos que os americanos, na essência da sua Democracia, são iguais a nós, pois tantos dos seus ideais são semelhantes aos nossos, se não exatamente os mesmos. Efetivamente, os ideais da Revolução Americana são homónimos aos da Revolução Francesa, talvez exceto o da Fraternidade. Mas, embora os ideais tenham os mesmos nomes, tiveram e têm práticas radicalmente diferentes, que marcam uma cultura que acaba por se tornar quase incompreensível de um lado para o outro do Atlântico.
Este aspeto é semelhante ao dos países Comunistas que se apelidavam e apelidam Repúblicas Democráticas, como a China, por exemplo, como tantos outros: não é simplesmente por hipocrisia ou para gerar confusão; há realmente uma teoria da Democracia que estes países adotaram e que justifica a sua forma ditatorial e totalitária, embora altamente criticável.
O contraste principal com a Europa reside em percepções diferentes sobre a palavra Liberdade. Os Founding Fathers (os redatores da Constituição e da Declaração da Independência) viam a Liberdade, como hoje se define em Filosofia Política, como Liberdade Negativa, o que contrasta radicalmente a Liberdade Positiva da Revolução Francesa.
Liberdade Negativa, ou “Liberdade de…” é a Liberdade que consiste em não ser impedido de agir. Esta Liberdade olha para o ser Humano como “naturalmente” livre e dono absoluto da sua felicidade individual, mas como o ser Humano necessita de se associar para ser feliz — numa família, tribo ou Estado — então verga livremente algumas das suas liberdades, mas só aquelas necessárias para o bom funcionamento dessa associação, e só enquanto decidir estar associado a ela. É importante perceber que, aqui, a relação com o Estado é de suspeição, ou até de antagonismo, pois existe um combate entre duas Liberdades, a do Estado e seus dirigentes de se imporem aos cidadãos, e a dos cidadãos de resistirem ao Estado. Daqui surge o Individualismo Americano, pois, no limite, o antagonismo expande-se, não apenas ao Estado, mas igualmente a todos os outros cidadãos. Nesta visão, chamada também Libertária, o Estado deve ser tendencialmente pequeno, fazendo apenas o mínimo necessário para manter a coesão interna, de forma a não “pisar” as liberdades dos cidadãos e não limitar a potencial felicidade dos seus cidadãos. O Estado é funcional e não moral.
Ao contrário desta, a Liberdade Positiva, ou “Liberdade para…” vê que a Felicidade só se alcança em associação e coletivamente e, portanto, há valores acima da Liberdade que devem ser defendidos pelo Estado. Cabe ao Estado e à ação coletiva (em vez da individual) rectificar erros passados e presentes e dirigir a sociedade para um futuro melhor. Aqui, a relação do indivíduo para com o Estado é de confiança, pois, levando ao seu cúmulo, o indivíduo pode até estar míope para o que é o seu próprio bem: esta é a visão Comunista que permite à China apelidar-se de Democrática. O Estado tem uma moral, uma visão para um objetivo societário, para além de ser meramente funcional.
A Europa tende mais para a Liberdade Positiva, porque tem uma história em que o poder político se encontra vinculado a um objetivo de organização moral da sociedade (no caso da Inglaterra, a Igreja Anglicana ainda se encontra unida ao Estado na mesma pessoa do Rei). O Estado, na Europa, assume essenciais prerrogativas e deveres morais, que levam a que os países Europeus sejam muito mais abertos ao Socialismo do que os Estados Unidos, pois o capitalismo não tem uma ambição de moralidade social. Ao contrário da Revolução Americana, que teve a intenção de restabelecer a autonomia das antigas colónias, as revoluções Francesa, a Portuguesa de 1910, e a Soviética, por exemplo, tiveram a ambição de mudar profundamente a sociedade, tomando atitudes radicais, especialmente contra a Igreja, fonte da antiga moral, e acabando na morte ou exílio de indivíduos ou até de classes sociais não-desejadas, a favor de um “Mundo melhor” em que vigorava uma “nova moral”.
Como a revolução Americana foi uma revolução contra uma excessiva intrusão do Estado – no caso, o Estado Inglês em relação aos impostos dos colonos — o direito ao porte de arma está consagrado na própria Constituição — no “Second Amendment” — por ser essencial para se poder resistir ao Estado, caso este tente impor aos cidadãos algo que seja alheio aos desejos dos indivíduos. Portanto, o “Second Amendment” não implica apenas o direito do indivíduo à autodefesa pessoal, mas também o direito de se revoltar e insurgir-se contra o Estado. Desta forma, fica consagrado o tiranicídio, não como direito legal, mas como privilégio prático, e terá sido provavelmente essa motivação que o tentativo-assassino terá tido, no sentido de “salvar” os EUA de Trump, no contexto de uma retórica clara, que não se limita aos EUA, de que a eleição do Trump seria uma ameaça à democracia e um desastre mundial.
A verdadeira ironia não é que um defensor de armas seja morto por elas, é antes que a retórica política que criou o contexto para esta tentativa de assassinato apenas sirva para intensificar o problema que os círculos mediáticos e as “elites” estão supostamente a tentar evitar. Quer seja em termos da democracia americana, quer em termos da Aliança Atlântica.
A crítica constante a um candidato a cargos políticos ou a uma determinada legislação adoptada legitimamente num outro país cria ressentimentos que afastam os povos, reforçando nuns uma perceção de ingerência e noutros um sentimento de superioridade arrogante. Arrogância que inegavelmente persiste, não só naqueles que perpetuam essa mensagem, mas também no cidadão comum, que nada mais faz do que consumir essa retórica, pois não sabe nem se interessa nos verdadeiros porquês.
Quanto mais ridicularizarmos os Americanos pela sua cultura e política, mais os Americanos se afastarão de nós, e menos relevantes seremos na sua visão Geoestratégica, pois esta não depende só de perspectivas militares e económicas, mas também das relações empáticas inter-povos. Se queremos os Estados Unidos da América como aliado e amigo, temos de nos esforçar para compreender o porquê das suas ações e dos seus direitos, em vez de julgá-los com base num conhecimento superficial da sua maneira de ser, especialmente na sua conduta política. Tolerar a escolha de um outro povo, especialmente se esta for, para nós, a escolha “errada”, é absolutamente necessário para o bom funcionamento de uma aliança.
Mestrando em Filosofia Política, Universidade de Leiden